“Onde os outros vêem o acaso, eu procuro a ordem”

Há 30 anos, o geneticista António Lima de Faria publicou um livro que contraria a célebre teoria de Charles Darwin. Ali defendeu que a evolução acontece sem selecção. É por isso, insiste aos 96 anos, que a sua mulher não gerou um rato nem um elefante.

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António Faria de Lima completa 97 em Julho Manuel Roberto

Se tivéssemos cumprido o desejo de António Lima de Faria o título deste texto seria: “Os grandes rios são criados pelos pequenos afluentes.” É assim que o cientista vê a sua obra e vida quando faltam poucos dias para completar 97 anos. Arriscamos dizer que é uma visão modesta para quem deu tanto à ciência e não só. Se o mundo tem afluentes, rios e mares, Lima de Faria será, pelo menos, um grande rio nesta metáfora da vida. O cientista, que nasceu em Portugal e cedo emigrou para a Suécia onde se naturalizou e vive até hoje, esteve no Porto e em Cantanhede numa viagem de trabalho. “Business. Sempre business”, esclarece.

É professor emérito de citogenética molecular na Universidade de Lund, na Suécia, onde ainda ocupa um gabinete de trabalho, é também doutor honoris causa pela Universidade do Porto e considerado um dos mais importantes cientistas portugueses. Entre outras honras e distinções é cavaleiro condecorado pelo rei sueco e grande-oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada por Portugal, pela sua contribuição para a biologia molecular. É membro de cinco academias de ciência. A cátedra de citogenética na Universidade de Lund foi criada propositadamente para António Lima de Faria e acabou quando se reformou, uma prerrogativa que só alguns dos maiores cientistas do mundo mereceram, como Albert Einstein e Max Planck.

Nos dias que esteve em Portugal, António Lima de Faria participou em conferências, deu palestras, agendou almoços e jantares de trabalho, viu o nascer do Sol da janela do quarto de hotel do costume (sempre o mesmo) no Buçaco e, no meio de uma preenchida agenda, gastou duas horas a falar com o PÚBLICO. Falou só do que quis e como quis. “Sempre decidi ao pequeno-almoço o que vou fazer nesse dia.”

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António Lima de Faria está na Suécia há 72 anos. Esta fotografia terá sido feita em Lund, em 1951. DR

Entre os nove livros que escreveu está Evolution without Selection – Form and Function by Autoevolution, publicado em 1988. É neste livro que o cientista apresenta um novo conceito – por favor, não lhe chamem teoria – sobre a evolução dos organismos que acredita estar assente na ordem, simplicidade e economia e que contraria o (aparentemente) o sólido edifício que Darwin ergueu baseado no acaso e na sobrevivência do mais forte ou mais apto. Hoje, muito do que António Lima de Faria defendeu há 30 anos no livro sobre a evolução sem selecção “foi confirmado pelos resultados da física experimental e da bioquímica”. O cientista, que sempre considerou que a teoria de Charles Darwin é valiosa, tinha razão.

“Só falo do que não sei”

António Lima de Faria constata que é impossível prever neste momento o que, em termos de evolução das espécies, virá depois do homem, do pardal ou do lírio. “Fala-se na teoria da evolução… Se fosse uma teoria, podia dizer-se concretamente o que iria acontecer: que a seguir ao homem vem esta ou aquela espécie. Não há teoria nenhuma da evolução que permita fazer isso. De forma que não há teoria da evolução, como já escrevia no meu livro Evolution without Selection.”

Neste livro, o cientista ultrapassa a visão de Darwin, contrapondo um novo conceito no qual a evolução biológica surge como uma consequência de três evoluções anteriores: a evolução das partículas elementares, dos átomos e dos minerais. O conceito que propõe não é, definitivamente, uma nova teoria da evolução. “Nunca propus teoria nenhuma da evolução. Não há conhecimento suficiente. O que propus é uma interpretação diferente. Uma maneira diferente de investigar e que escrevi preto no banco. O darwinismo é um obstáculo ao conhecimento físico-químico da evolução. Porque o mecanismo nunca pode ser a selecção, a selecção é uma maneira de sortear, de separar, e isso não pode ser. O mecanismo só pode ser físico-químico. E isso mantenho-o hoje.”

Mas, António Lima de Faria não perde tempo a explicar o que já sabe e escreveu. “Aquilo que sei as pessoas podem ler nos livros. Está lá nos livros. Só falo do que não sei: do que não sabemos e temos de investigar”, justifica.

E o que é que não se sabe? “Dou-lhe um exemplo. Comecei a conferência no Porto com a pergunta: por que é que a minha mulher não gerou um rato ou um bebé elefante? Não há prova nenhuma genética que garanta que a minha mulher não pudesse ter produzido um ratinho. Porquê? Nos anos 80 pensava-se que a diferença entre um humano e um rato era de um máximo de 50%. Havia 50 % de genes que deviam ser diferentes para o rato poder ser diferente do ser humano. Agora não. Agora, os humanos e o gorila? Têm 99% de similaridade dos genes. O ser humano e o rato? 93%. Pior ainda, veja-se o anfioxo, que é o animal mais simples, que ainda vem antes das lampreias. Fez-se a análise genética e comparou-se os genes do anfioxo – são 550 milhões de anos de diferença – com os do ser humano e a semelhança é de 90%. Então, por que é que a minha mulher não teve um anfioxo?”

Porque há uma ordem, arriscamos interromper. “E onde é que está essa ordem? Essa ordem tem de estar determinada muito cedo, logo na fecundação. Agora estamos a começar a perceber que os pequenos ARN, pequenas moléculas, micro-ARN, é que dirigem o desenvolvimento.”

Entrevista a António Lima de Faria from Público on Vimeo.

O livro “abafado”

António Lima de Faria reconhece que o seu livro sobre a autoevolução a que alguns acharam antidarwinista não teve o impacto que merecia, apesar de ter sido traduzido para russo, japonês e italiano. A maioria das pessoas nunca terá ouvido falar nem do livro nem do seu autor. É de Darwin e da sua evolução com selecção que ainda continuamos a falar e a ouvir falar. Mas há uma explicação para isto. Aliás, há várias. Primeiro, diz, a versão de Darwin é a versão que convém às multinacionais que continuam a ser a “ideologia dominante num período de vácuo ideológico”. Segundo, a sua perspectiva foi propositadamente ignorada. “Este meu livro foi abafado. Não é citado. Acaba de ser publicada uma enciclopédia da evolução que não o cita. O mesmo acontece a colegas meus que fizeram experiências muito valiosas que mostram que não é a selecção que faz a evolução. Não são citados.” Em jeito de desabafo, conclui: “A maior mentira não é o que se escreve. É aquilo que não se menciona. É assim que se dirige a opinião pública. Pela ausência de informação. O filtrar permanente da informação.”

E será que, um dia, o sólido edifício do acaso e da selecção erguido por Darwin vai acabar por cair? “Não, não se trata de cair. Toda esta atitude é sempre valiosa na ciência, leva a muitos trabalhos, a muita informação que se acumulou. Essa informação não se vai deitar fora. Fica. É muito bem estabelecida. Simplesmente, vai ser ultrapassada. Na ciência ultrapassa-se”, diz. Daqui a 20 anos poderemos até dar razão a Lima de Faria, mas vamos continuar a falar de Charles Darwin. “Sem dúvida, porque a contribuição dele é altamente valiosa e histórica. Tal como se fala de Newton e já se sabe que as suas leis são aproximadas. Há sempre uma aproximação. Darwin era muito inteligente e disse logo que a selecção não podia explicar tudo.”

Apesar da resistência, António Lima de Faria vai falando do seu trabalho. Confirma, por exemplo, que deu um contributo importante para o estudo dos cromossomas. “Nunca tive o Prémio Nobel. Nos anos 70 estive próximo disso quando fiz um trabalho considerado clássico sobre os cromossomas.” Foi em 1980 que lançou o desafio nesta área ao escrever o artigo "How to produce a human with 3 chromosomes and 1000 primary genes"  e em 1983 publicou um novo livro sobre a evolução molecular e a organização do cromossoma. Um ano depois, participou no filme The fusion of human with plant cells, uma co-produção da televisão portuguesa e sueca. “Fui o primeiro cientista a realizar a fusão de células humanas com células vegetais”, assinala. O seu mais recente livro apresenta-nos uma nova era da biologia atómica no formato de uma tabela periódica. Periodic Tables Unifying Living Organisms at the Molecular Level propõe a organização sistemática dos organismos vivos numa lógica baseada no nível atómico ou outras características físico-químicas, tal como os elementos nas tabelas periódicas.

“O melhor é escrever, escrever”, sugeria António Lima de Faria no início da nossa conversa, olhando com desprezo para o gravador ligado perto de si. Telemóveis, computadores e outros dispositivos do género não passam de “distracções” e, por isso, não lhe servem. Anuncia que a agenda desta visita a Portugal – anotada à mão num papel A4 – “é só business, ciência”. “Toda a minha vida foi sempre assim, senão nunca tinha feito nada de sério. Sempre trabalhei 14 horas por dia, sábados e domingos, e nunca tive férias. Escreva: sábados e domingos. Nunca ouvi falar de feriados.” Uma dedicação assente na convicção de que “nunca se pode fazer nada na ciência senão numa continuidade permanente de concentração”.

Temos algumas perguntas… “Sim, mas isso vem depois. Primeiro vamos localizar.” O relato começa no Porto, numa conferência no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) que fez a convite do investigador Helder Maiato, para estudantes e investigadores. Já sabemos que nesta sessão aberta, organizada no âmbito do GABBA (Programa Graduado em Áreas da Biologia Básica e Aplicada), falou de biologia molecular, a área a que dedicou a vida. “Life is basically simple” foi a frase escolhida para o princípio e fim da palestra. Foi aqui que disse – como agora repete – que não há muito tempo, nos anos 80, pensava-se que a semelhança entre os genomas do rato e dos humanos era de 50% e hoje sabemos que é de 90%.

Doações com condições

O guião da conversa leva-nos do Porto para o Buçaco. No Palace Hotel Buçaco não descansou, garante. Alojou-se no quarto número 15, como sempre faz. “É o que dá para as traseiras. Quando acordo às seis da manhã, tenho o sol a começar a tocar no topo daquela floresta que é uma tapeçaria viva, de todos os tons de verde.” Devagar, conseguimos aqui e ali seduzi-lo com um desvio aos planos que fez para esta sessão de trabalho. Mas há um ponto na sua agenda que não é negociável. O professor abre a capa pousada nas pernas e mostra duas páginas com a lista das doações que fez até hoje. Aqui estão, entre outras dádivas, os mapas antigos de Portugal (desde 1561 até 2015) que foi adquirindo e que ofereceu agora ao agrupamento de escolas António Lima de Faria, em Cantanhede. A lista também refere a doação de cinco mil euros “enviados directamente” a Manuela Granzina, professora na Universidade de Coimbra, para que se crie “um fundo de dez bolsas/prémios, de 450 euros cada, a distribuir uma por ano, a jovens inovadores de ciência”. Estas são algumas das forças que fazem o afluente de que Lima de Faria falava. De Cantanhede recebeu a boa notícia sobre a intenção de duplicar este prémio. É o afluente a ganhar mais força.

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Manuel Roberto

“Sempre tive muito pouco dinheiro. Quando decidi ficar na Suécia, não tinha um tostão no bolso.” Os tostões que, entretanto, juntou são usados para comprar “o que mais ninguém quer” e umas boas pechinchas. Que depois, generosamente, oferece. “Se quiser um título para esta entrevista tenho um: os grandes rios são criados pelos pequenos afluentes”, dita pausadamente, exigindo ver a frase escrita. Mais tarde, desabafa que “comparado com Gulbenkian ou Champalimaud” a sua contribuição “é uma migalha”. Mas não é.

Entre as coisas onde gastou os seus tostões está um velho moinho em ruinas para os lados de Ponte da Barca, que comprou em 1991 para recuperar. “Eu transformo as ruínas em pérolas. Na ciência, no laboratório, é a mesma coisa. Uma equação que define uma relação é muito mais valiosa do que uma pérola. Porque permite prever. Isso é que é ciência. É a capacidade de prever.”

Lima de Faria impõe condições em tudo o que faz. “Sou violento”, avisa. Quando lhe disseram, por exemplo, que queriam dar o seu nome ao agrupamento de escolas de Cantanhede impôs três condições. Queria que os meninos fossem um dia assistir ao nascer do sol, que tivessem um outro dia dedicado apenas a apanhar minhocas e andar na natureza e que fosse reservado um outro dia ainda para distribuir rebuçados aos alunos. Infelizmente, constata, os pedidos acabaram por nunca ser acatados. “Há sempre uma desculpa.”

Quando lhe disseram que queriam dar o seu nome a uma rua de Cantanhede recusou a homenagem que lhe pareceu uma “coisa altamente estéril” e fez uma contraposta. Preferia que fosse criado um prémio para os melhores alunos do 12ºano. Ficou estipulado que o prémio seria de 750 euros e, mais uma vez, António Lima de Faria tinha condições. Desta vez era só uma: “Um prémio para dar ao melhor aluno no fim do ensino secundário, para rapazes e raparigas, e que fosse dado sem obrigação. Fizessem o que quisessem ao dinheiro, isso era obrigatório.”

Recentemente, fez mais doações ao agrupamento de escolas, entre as quais está uma enciclopédia “colossal”, publicada pelo célebre ornitólogo catalão Josep Del Hoyo. “Cada volume tem mais de 800 páginas e 50 pranchas a cores. São 17 volumes ao todo, que descrevem no máximo detalhe as mais de nove mil espécies de aves que existem em todo o mundo.” António Lima de Faria espera que os alunos procurem as aves de Portugal nos milhares de páginas desta enciclopédia. Depois é preciso que tirem fotocópias, recortem as gravuras e façam um caderno de todas as espécies de Portugal. Sem Internet, à moda antiga. Além dos mapas e livros, deixou uma mensagem aos alunos de Cantanhede: “Sê autêntico. O importante é fazer um trabalho sério. Só o trabalho sério é que perdura.”

As ligações e relações nunca se quebraram, mas António Lima de Faria não quis nem quer trabalhar no país onde nasceu. “Só volto para um sítio onde posso trabalhar. Não existem os livros, as bibliotecas e os laboratórios que eu preciso para trabalhar em Portugal.” E Lima de Faria, como bem se vê, ainda trabalha. “Nunca me reformei. Oficialmente, estou reformado só há 32 anos”, diz a sorrir.

“Tudo aquilo que fiz resume-se a uma procura da ordem. Uma procura da ordem a todos os níveis. Tem sido uma procura da ordem nos cromossomas, na célula e na evolução dos organismos. Onde os outros vêem o acaso nas mutações e na selecção, eu procuro a ordem”, resume. Um dia pediram-lhe para resumir o seu trabalho. Depois de alguma hesitação, escreveu 15 páginas com o título “Order is everywhere but it’s not total”. Garante que nunca andou na vida “nem para ser catedrático nem para ser prémio Nobel”. Nem para ficar com o nome na história. “Não. Never. Isso era uma traição. Isso era uma porcaria.” Por fim, aposta que a maior parte das coisas que hoje diz e escreve vão acabar por se confirmar só daqui a 30 ou 50 anos. E, por isso, marca um novo encontro de trabalho: “Quando nos encontrarmos daqui a 20 anos, vamos ver se o que estou a dizer agora está certo ou não está certo.”

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