França tem “apartheid territorial, social e étnico”, diz Valls

Primeiro-ministro defende que a sociedade francesa não deve ser reduzida a “apenas uma mensagem”.

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Valls falou dos "males" que corroem a França Patrick Kovarik / AFP

Impôs-se sobre a França um “apartheid territorial, social e étnico”. A expressão é do primeiro-ministro francês, Manuel Valls, na sua declaração de Ano Novo à imprensa em que tentou encontrar um ponto de equilíbrio entre as várias tensões vividas actualmente no país.

“Os últimos dias mostraram muitos dos males que corroem o nosso país e os desafios que temos de enfrentar”, disse Valls. “É necessário reconhecer todas as fracturas, as tensões que se desenvolvem há muito tempo e que apenas são faladas de forma intermitente.”

Nas últimas duas semanas, a sociedade francesa tem vivido entre duas paredes: a defesa da liberdade de expressão, corporizada pelo sloganJe suis Charlie”, e o respeito por valores considerados sagrados, manifestados pelos protestos contra a primeira página do semanário satírico (uma caricatura do profeta Maomé).

A classe política tem tentado acolher as preocupações e os receios manifestados. O Presidente, François Hollande, participou em vários actos simbólicos na sequência dos ataques, como a homenagem aos polícias mortos ou o discurso no Instituto do Mundo Árabe. Desta vez foi Valls que tentou fazer um diagnóstico da complexidade da sociedade francesa, dizendo não poder ser reduzida “apenas a uma mensagem”. “A França protege a liberdade de expressão por inteiro, mas defende também outros valores que nos são caros: a paz, o respeito pelas convicções, o diálogo entre religiões”, sublinhou.

Valendo-se até da sua experiência como ministro do Interior, numa altura em que teve que lidar com os protestos nos subúrbios parisienses em 2005, Valls perguntou “quem hoje se lembra?”. “E, porém, (…) os estigmas continuam presentes”, reconheceu, acrescentando que, à “miséria social”, são somadas “discriminações quotidianas, porque não têm um bom nome de família, uma boa cor de pele ou apenas porque é uma mulher”.

A identificação de um “apartheid territorial, social e étnico” na sociedade francesa é algo a que Valls já tinha aludido, como notou a imprensa francesa. De acordo com Le Figaro, foi em 2009, na altura como deputado, que Valls recordou os motins de 2005 e alertou para a possibilidade de os episódios se poderem vir a repetir. “Podíamos falar dos problemas que conhecemos, sobretudo o apartheid territorial, social, étnico e religioso que existe nos nossos bairros. O que aconteceu em 2005 pode voltar a acontecer amanhã dez vezes maior porque não tratámos dos problemas de fundo”, disse num debate na época.

Feito o diagnóstico, as soluções não são fáceis de apontar e passam sobretudo pela unidade e por uma refundação da “cidadania”, de acordo com o “espírito do 11 de Janeiro” – a data das várias manifestações contra o terrorismo que trouxeram milhões de pessoas para a rua em várias cidades francesas.

“Devemos combater a cada dia esse sentimento terrível de que possam existir cidadãos de segunda categoria e que haja vozes que contem mais do que outras. (…) Em muitos bairros, na casa de vários compatriotas, instalou-se esse sentimento de que há esperança e que a República se deve renovar com esperança”, afirmou Valls.

E, mais uma vez, Valls voltou a referir o perigo das “amálgamas” entre o islão e o terrorismo. “Devemos evitar a armadilha das amálgamas, das identidades irreconciliáveis. Essa é a armadilha que nos põem os terroristas”, defendeu.

À saída, o primeiro-ministro admitiu que usou “palavras fortes”, mas defendeu ser “preciso dizer as coisas claramente para ser ouvido”. “É necessário dar respostas republicanas, senão os franceses irão procurar respostas estigmatizantes na Frente Nacional e em Marine Le Pen”, acrescentou.
 

   

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