Valls anuncia "medidas excepcionais" contra o jihadismo e radicalismo

Primeiro-ministro diz que não se trata do regime de excepção reclamado pela bancada da UMP no parlamento.

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Deputados cantaram espontaneamente A Marselhesa François Guillot/AFP
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O discurso de cerca de 20 minutos de Valls foi muito aplaudido por todos os parlamentares François Guillot/AFP

O primeiro-ministro francês, Manuel Valls, apresentou à Assembleia Nacional as medidas para combater “o jihadismo e o radicalismo” e responder às ameaças dos “grupos terroristas que se organizam” para atacar a república. São “medidas excepcionais”, reconheceu, mas não de excepção, distinguiu o primeiro-ministro, um dia depois de recusar a aprovação de um Patriot Act à francesa. “Não adoptaremos, jamais, medidas que estejam em desacordo com os princípios da lei e com os valores da nossa democracia ou que ponham em causa o Estado de Direito”, frisou.

As iniciativas propostas pelo Governo vão no sentido de impedir que actos terroristas como o ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo – que lança esta quarta-feira uma edição especial, com uma tiragem histórica de três milhões de exemplares –, o assalto mortal a uma agente da polícia na rua ou o sequestro à mercearia de produtos kosher Hyper Cacher possam voltar a acontecer. Para tal, o executivo propõe o reforço da vigilância de indivíduos suspeitos, acusados e detidos por crimes de terrorismo, e outros que as autoridades considerem um “risco” para a segurança nacional.

Assim, aqueles que estejam no sistema prisional e sejam classificados como “radicalizados” terão um novo regime de isolamento em alas especiais dentro das cadeias, que para o coordenador europeu da luta contra o terrorismo, Gilles de Kerchove, têm funcionado como “incubadoras de jihadistas”. A medida, que está a ser experimentada desde Novembro numa prisão da região de Paris, será alargada a toda a França.

Em relação aos indivíduos em liberdade, Manuel Valls fez referência à criação de um “arquivo” de recenseamento de pessoas que tenham integrado grupos de combate ou sido condenadas por terrorismo, e que serão obrigadas a declarar o domicílio e a submeter-se ao controlo das autoridades. As “condições jurídicas” para o estabelecimento deste novo arquivo serão definidas pela ministra da Justiça, Christine Taubira, e pelo ministro do Interior, Bernard Cazeneuve – que ficou ainda incumbido de apresentar, “dentro de oito dias”, o rascunho de um novo decreto para agilizar a recolha de informação e vigilância electrónica de suspeitos de terrorismo, com “propostas particulares para a utilização da Internet e das redes sociais”.

Mais polémica é a intenção de avançar com um programa de vigilância de passageiros aéreos, rejeitado pelo comité de Liberdades do Parlamento Europeu. Manuel Valls defendeu o funcionamento deste dispositivo à escala europeia, mas recusou esperar pela luz verde de Bruxelas: segundo garantiu, o chamado sistema PNR (acrónimo de Passenger Name Record) francês estará operacional no terceiro trimestre de 2015. O programa prevê que os dados pessoais dos passageiros, coligidos pelas companhias aéreas, sejam cruzados com os arquivos da polícia e dos serviços secretos, que poderão sinalizar comportamentos inabituais (por exemplo, a compra de viagens só de ida para destinos sensíveis ou percursos com múltiplas escalas para baralhar pistas).

De resto, o primeiro-ministro anunciou ainda o “reforço muito significativo” de competências, quadros e meios materiais dos serviços de informação e antiterrorismo, que reconheceu estão “sobrecarregados” – só a investigação do “ramo” sírio e iraquiano em França requere actualmente 1250 profissionais, exemplificou.

A intervenção de Valls foi pontuada por apelos à razão, à moderação, tolerância e respeito “pela liberdade e a democracia”. O primeiro-ministro fez questão de dizer que “a França está em guerra contra o terrorismo mas não está em guerra contra uma religião”, e lembrou que “o Estado protege tanto aqueles que crêem, como os que não crêem”. O discurso, de cerca de 20 minutos, foi longamente aplaudido por todos os deputados.

Antes disso, já se tinham visto outros sinais de unidade no hemiciclo: os parlamentares cumpriram um minuto de silêncio em memória das vítimas dos atentados em Paris e, de improviso, entoaram o hino nacional (“acontecimento raro”, assinalava a imprensa francesa). Também prestaram tributo, com uma ovação de pé, às forças de segurança, que esta semana iniciaram uma operação sem precedentes no país: o Exército disponibilizou dez mil soldados para patrulhar a capital e outros pontos sensíveis do território, enquanto cinco mil polícias estão destacados para a segurança dos locais de reunião de judeus e muçulmanos.

Porém, a unanimidade acabou por ser quebrada nas intervenções políticas posteriores. O líder da bancada da UMP, Christian Jacob, defendeu a votação de um regime verdadeiramente excepcional, que “restringisse as liberdades de alguns” ou autorizasse a “censura da Internet e da televisão”, num discurso que o Libération (diário de esquerda) descreveu como “ultra-securitário” e vários críticos nas redes sociais denunciaram como “ultra-reaccionário”. “E com estas palavras Jacob põe um fim à unidade nacional”, vaticinou o deputado socialista Pascal Cherki, que não deixou de lamentar a ausência de uma “dimensão social” no discurso do primeiro-ministro, “que não vai ser capaz de resolver todos os problemas com medidas da ordem”.

Os mais procurados
A polícia acrescentou mais um nome à lista dos “mais procurados de França”: Mehdi Sabri Belhouchine, o cidadão francês de 23 anos que viajou para a Turquia e posteriormente para a Síria com Hayat Boumeddiene, companheira de um dos terroristas mortos pela polícia no cerco ao supermercado judaico (a investigação está a tentar apurar se o alvo inicial era uma escola judaica das proximidades). Belhouchine foi interrogado em 2010 por suspeita de ter sido recrutado para combater na fronteira do Paquistão e Afeganistão, mas nunca foi acusado.

Um outro francês, que foi detido no primeiro dia do ano na Bulgária ao abrigo de um mandado de captura por suspeita de sequestro do filho, é suspeito de envolvimento no ataque ao Charlie Hebdo. Fritz-Joly Joachim, de origem haitiana, foi detido a bordo de um autocarro que se dirigia para a fronteira turca: a ex-mulher, que apresentou queixa, alega que pretendia seguir com o filho de três anos para a Síria e juntar-se aos jihadistas, uma acusação que o próprio desmentiu, negando ser “radical ou terrorista”.

As autoridades estabeleceram uma série de contactos entre Joachim e um dos dois irmãos Kouachi, autores do atentado ao Charlie Hebdo que fez 12 mortos. As buscas pelos cúmplices prosseguem, com a polícia a suspeitar que outras seis pessoas – incluindo um homem que foi visto a conduzir o carro de Boumeddiene – possam ter participado no ataque.

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