É preciso e possível combater tanto fracasso escolar

Neste tempo privilegiado de reflexão no espaço público acerca dos resultados dos exames nacionais, em que somos confrontados mais um vez com um baixo nível geral de resultados, vale a pena perceber melhor como poderemos passar de um modelo de tanta “improdutividade escolar” para um outro que seja capaz de proporcionar reais oportunidades de sucesso para cada um dos alunos.

Em vez de praguejarmos na escuridão ou diante dos problemas, mais vale acendermos uma vela, já propunha Séneca. No termo de um ano de pesquisa sobre os factores que promovem o sucesso em alunos que evidenciam baixo rendimento escolar (BRE), em Portugal, no quadro do Projecto Fénix, valerá a pena abordar as conclusões a que chegámos. Os factores que se destacam são cinco: o tempo e o cuidado, a cooperação profissional, o foco e a liderança, a reorganização pedagógica e a motivação e esperança de professores, alunos e pais.

Vale a pena trazer a este espaço, ainda que brevemente, a descrição destes factores. O primeiro, o tempo e o cuidado: é importante que as nossas escolas aprendam a dispor de e a organizar tempos de ensino/aprendizagem diferenciados. Muitos alunos que se encontravam rotulados de “meninos do insucesso”, vieram a recuperar as aprendizagens quando lhes foi criada uma outra oportunidade para aprenderem, com mais calma, mais paciência, mais cuidado pedagógico, mais atenção e proximidade, mais e melhor tempo. Deste modo, uma boa parte deles acabou por se tornar “aprendente”, ou seja, não agarrou apenas os conteúdos propostos, mas agarrou também os processos e os métodos adequados à gramática escolar; motivaram-se e acabaram por alcançar os níveis esperados. Ou seja, dispomos entre nós dos modelos pedagógicos adequados à redução dos elevados níveis de insucesso (desenvolvidos em escolas portuguesas, estes e outros que nem sequer estão estudados e divulgados). Assim haja vontade social e política para que eles vinguem e frutifiquem. A inversão desta tendência pesada de fracasso do sistema escolar requer investimentos contínuos de muitos anos.

Segundo: este trabalho realizado pelos professores das nossas escolas pressupõe um exercício profissional cooperativo. Esta é a dimensão mais valorizada pelos professores envolvidos na recuperação de alunos com BRE, que nos dizem: “na nossa reunião semanal trocamos materiais e informações, decidimos em equipa o que leccionar primeiro e depois e como o fazer...” ou ainda “este modo de trabalhar abana-nos”. Ou seja, os docentes de um pequeno conjunto de turmas têm de pensar continuamente (e não uma ou duas vezes por trimestre) a evolução dos seus alunos, propondo aos que revelam menor consecução nas aprendizagens a deslocação temporária para um “ninho”, onde alguns professores desenvolvem outras estratégias pedagógicas, com elevada eficácia. Esta depende sobretudo da possibilidade e da capacidade destes profissionais de ensino trabalharem em conjunto. Custa-nos a admitir isto no espaço público, mas a “silagem” do exercício profissional dos docentes é que mata a dignidade e a dignificação da nossa profissão.

Terceiro: estas escolas que analisámos estão muito focadas na melhoria das aprendizagens por parte de todos os alunos, não se limitando a constatar e certificar os que aprendem e os que não aprendem (ou a seleccionar a admissão dos seus alunos, como tantas escolas públicas hoje fazem). As suas lideranças estão muito conscientes do enorme desafio, das dificuldades inerentes e dos ganhos socioculturais de tal focagem. São escolas que não fazem tudo, nem entram em tudo, nem se dedicam a todo o “folclore escolar”, sabem que não trabalham necessariamente para os primeiros lugares dos rankings (quando estes surgem descontextualizados), mas fazem tudo para que todos os seus alunos alcancem bons resultados, sendo óbvio que nem todos atingirão o mesmo tipo de desempenhos académicos.

Quarto: escolas focadas neste tipo de sucesso de todos os seus alunos, incluindo os que têm BRE, são escolas que empreendem, com muito, muito trabalho, adaptações e reorganizações pedagógicas, de grupos, de tempos, de métodos, criando ambientes escolares pedagogicamente mais ricos. Inventam-se novos modos de agrupar os alunos e de ensinar (como se faz nos projectos  “Fénix” e “Turma Mais”) e criam-se outros instrumentos, tempos e modelos de avaliação dos alunos. São escolas que não remetem para soluções escolares pobres os alunos pobres, como tanto se pratica, mas que adoptam uma séria personalização do ensino e que rejeitam fazer da inapelável diferenciação uma consagração da desigualdade social. Estas escolas apostam muito fortemente no trabalho dos professores em equipa, porque não há outro modo de vencer as dificuldades que o desafio da universalidade escolar coloca. Sabemos que estamos a dar os primeiros passos neste sentido, hoje tão óbvio, pois é preciso vencer duzentos anos do modelo de trabalho isolado dos professores dentro da mesma instituição educativa...é preciso ultrapassar a ideia de escola como um “aulário” uniforme... e isso não é fácil, mas é obrigatório.

Quinto: este foco e estes novos procedimentos pedagógicos ajudam a colocar as escolas numa rota de motivação profissional e num clima positivo, estimulador e construtivo. No contexto sociocultural em que vivemos, não é fácil ensinar e aprender todos os dias com a necessária motivação e esperança, como construtores de um futuro melhor. Este surge até bastante incerto, quando não assaz negro. Mas, sem a implicação e motivação dos professores e directores não há ensino de qualidade; sem a implicação e motivação dos alunos não é possível alcançar as aprendizagens e a aquisição dos valores que a comunidade nacional requer; sem o apoio dos pais, em casa, é difícil manter esta elevação quotidiana que a escolarização supõe. Ou seja, é preciso criar, no país e em cada comunidade local, um clima positivo e de incentivo aos alunos, aos professores e às escolas, um quadro de esperança e de investimento sociocomunitário, de outro modo é muito fácil (mesmo muito fácil) que muitos baixem os braços e desistam.

Um saber profissional baseado em evidências

Para combater o insucesso escolar e o fracasso das escolas não há milagres, só há trabalho, muito, persistente e bom trabalho. Não chega uma política de promoção de uns “programas especiais” e deixar ficar tudo na mesma. Há mudanças que têm de ser estruturais. Políticas, portanto. Nunca algum dia se trabalhará profissionalmente em equipa, nas escolas, sem que existam tempos claros para que esse trabalho assim se faça, com qualidade. Se este tempo existir e for estruturalmente consignado, como o é nestes projectos que já chegam a 200 agrupamentos/escolas, as novas possibilidades de trabalho acontecem e desencadeiam-se novas oportunidades para melhores aprendizagens por parte de cada um dos alunos. Portugal continua a deixar mais de 20% dos jovens pelo caminho, sem completarem uma escolaridade efectiva de 12 anos.
É positivo que haja prémios pontuais às escolas que melhoram de um ano para o outro o seu desempenho. Mas se queremos atacar os níveis tão elevados de insucesso que aqui ficam de novo expostos, temos mesmo de tomar medidas de fundo e que contribuam para alterar estruturalmente o modo de ensinar e aprender.

As políticas de apoio à permanência dos jovens no espaço escolar, evitando o abandono, são úteis e oportunas, mas representam geralmente pouco. Muitos jovens perguntam-se: ficar agora na escola mais três anos, mas a fazer o quê? De facto, essas políticas podem não passar de meras estratégias ocupacionais dos jovens, ou seja, estes podem fazer o que quer que seja desde que estejam ocupados. O desafio tem de ser bem mais ousado, porque além do mais não há alternativa: ou existem realmente modos diferenciados e pedagogicamente muito diferenciados de criar oportunidades educativas para cada um dos jovens obrigatoriamente escolarizados ou o que existe é uma enorme violência social sobre os 20 a 30% dos adolescentes e jovens que rejeitam as duas vias escolares dominantes: ensino geral para 57% e ensino profissional para 43% dos que permanecem nas escolas.

Constatamos, nesta investigação como em outras, que os professores portugueses precisam de elevar a sua capacidade de conceberem, realizarem e avaliarem o seu trabalho educativo escolar, enunciando um discurso profissional mais seguro, claro e assertivo. Como conversámos com os professores, não basta termos meia dúzia de ideias feitas sobre o que é uma escola, a pedagogia e a política de educação. Há um saber profissional a reconstruir, cada vez mais baseado na evidência acerca do que resulta e do que não funciona nas nossas escolas. E isto é que tem de ir ficando cada vez mais claro para todos.

Universidade Católica Portuguesa

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