Xanana informou Passos sobre suspeitas de corrupção na justiça de Timor

Procuradora expulsa afirma que nem ela nem os restantes funcionários judiciais portugueses tiveram interferência nos processos das petrolíferas.

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O presidente timorense Taur Matan Ruak despede-se de Cavaco Silva na visita que este fez a Timor em 2012 Miguel Madeira
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Pedro Passos Coelho e Xanana Gusmão, em Lisboa, em Fevereiro de 2014 Patrícia de Melo Moreira

O primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão, informou o Parlamento timorense e o Governo português de que estava “preocupado” com “alguns indícios” de corrupção no sistema judicial de Timor Leste, envolvendo magistrados.

Numa carta de 11 páginas que enviou em Outubro aos 65 deputados timorenses, Xanana diz que “interesses privados contactaram o Conselho Superior da Magistratura no sentido de influenciar a nomeação de juízes” nos litígios judiciais entre o Estado de Timor e várias companhias petrolíferas internacionais que exploram os recursos do Mar de Timor.

Há dezenas de conflitos deste género nos tribunais timorenses. “O que é mais alarmante”, escreve Xanana na longa exposição que fez ao Parlamento de Timor a 22 de Outubro, “é que o Conselho Superior da Magistratura não informou o Estado desses contactos impróprios”. Estas preocupações, conclui o antigo líder guerrilheiro da resistência, “exigem uma investigação urgente”.

O PÚBLICO sabe que, uns dias depois, Xanana escreveu ao seu homólogo português, Pedro Passos Coelho, e que nessa carta não só aborda também o tema da corrupção como vai mais longe. Na missiva a Passos Coelho, Xanana nomeia a ConocoPhillips – um gigante norte-americano de exploração de minerais que Timor Leste processou por não ter pago milhões de euros de impostos petrolíferos – e acusa a empresa de ter contactado magistrados dos tribunais de Díli. Diz também que tem provas desses contactos. O primeiro-ministro timorense não se refere ao conteúdo desses alegados contactos, descrevendo-os apenas como “inadmissíveis”.

Em nenhum momento das cartas Xanana se refere expressamente aos magistrados portugueses que trabalham no território e que receberam ordens de expulsão nos dias entre as duas missivas. As críticas são transversais ao sistema judiciário do país e incluem uma lista de dez “erros” dos tribunais e quatro “erros” do Ministério Público. Em documentos oficiais do Governo timorense é também mencionado outro episódio sobre a alegada parcialidade da justiça, a favor das petrolíferas e contra o Estado. Houve um juiz, relata-se, que no Verão passado requereu a escusa de um processo. A petrolífera envolvida no litígio “teve conhecimento dessa escusa na noite desse mesmo dia, uma vez que se referiu em tribunal a esse facto” logo no dia seguinte, enquanto “o Estado apenas foi notificado desse facto” duas semanas mais tardes. Por outro lado, os tribunais não estão a notificar o Estado de todos os requerimentos apresentados pelas petrolíferas, referem também os mesmos documentos.

Na justiça timorense trabalhavam até agora cerca de três dezenas de portugueses, entre juízes, procuradores, oficiais de justiça e outros profissionais. Uma das magistradas expulsas por Dili, a procuradora Glória Alves, afirmou esta sexta-feira, à chegada a Portugal, que nem ela nem os restantes funcionários judiciais portugueses tiveram qualquer interferência nos processos das petrolíferas.

Os motivos de “força maior” e de “interesse nacional” invocados pelas autoridades timorenses para mandar embora os cooperantes versam sobre 51 processos judiciais no valor de 378 milhões de dólares de impostos.

“O procurador cabo-verdiano, que foi também expulso, teve uma interferência nos processos do petróleo apenas como parte acessória, o que quer dizer que a defesa do Estado foi entregue a advogados privados e, portanto, são esses a parte principal dos sucessos ou insucessos que o Governo terá, porque não há processo nenhum transitado em julgado”, acrescentou Glória Alves, que é procuradora há 24 anos.

A magistrada pensa que a expulsão “não terá nada a ver com os processos do petróleo”, mas com uma “tentativa do Governo timorense de impedir o normal funcionamento dos tribunais”. “Se virmos o timing da resolução [que dita a expulsão], esta sai numa sexta-feira com uma reunião do Parlamento, uma reunião do Conselho de Ministros e é publicada no mesmo dia. O julgamento da ministra das Finanças tinha agendada a primeira sessão para a segunda-feira” seguinte, salientou, em declarações à agência Lusa, acrescentando que existem muitos processos em tribunal contra elementos do Governo e altos funcionários. “Para mim, esta expulsão tem apenas que ver com a tentativa do Governo de impedir o normal funcionamento dos tribunais em relação aos processos criminais”, observa a procuradora, que conta que Xanana Gusmão chegou a referir-se publicamente à sua pessoa como “estando a fazer muito mal ao país”, a propósito de processos concretos.

Gabinete Anti-Corrupção arrombado
Glória Alves dá ainda conta do facto de o Gabinete Anti-Corrupção, no qual trabalhava juntamente com colegas timorenses, ter sido recentemente arrombado. "Aparentemente não levaram nada. Deviam andar à procura de alguma coisa".

Há uma ideia que a magistrada quis sublinhar: “Não fui para Timor para fazer política. A dignidade de procuradores e juízes foi posta em causa e só havia uma coisa a fazer: mandarem-nos para Portugal”.

O presidente timorense quebrou, entretanto, o silêncio a que se tem remetido para reconhecer, numa declaração oficial, a “agitação e sobressalto” que a expulsão dos magistrados estrangeiros está a provocar. Reiterando o seu empenho no reforço da amizade e cooperação com os Estados irmãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Taur Matan Ruak revelou que “chamou para esclarecimentos” o primeiro-ministro e o presidente do Parlamento, tendo já ouvido sobre o assunto o ex-presidente Ramos-Horta, o líder da Fretilin e outras individualidades de relevo em Timor. O fortalecimento do Estado de Direito é um desafio que exige "diálogo persistente", faz notar o governante, mostrando-se confiante de que “a continuação do diálogo permitirá ultrapassar mais este escolho”

Em Portugal,  o vice-primeiro-ministro Paulo Portas disse à Lusa esperar que a expulsão de juízes portugueses de Timor Leste "não afecte outros domínios da cooperação" entre os dois países. "O Governo já se pronunciou com clareza sobre este assunto. Há regras e princípios que não devem ser postos em causa", acrescentou. Já a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, que suspendeu a cooperação judiciária, afirmou que "não foi respeitado o princípio da separação de poderes".

Questionado sobre a possibilidade de um apuramento de responsabilidades, Paula Teixeira da Cruz respondeu que "não é uma questão que se coloque", alegando que "não foi invocado nenhum motivo que determine” esse tipo de medida. Contudo, disse que "esse apuramento, a existir, o que não está de todo em causa, sempre competiria aos conselhos superiores da magistratura e do Ministério Público, porque Portugal respeita profundamente o princípio da separação de poderes".

Começa neste sábado na Foz do Iguaçu, no Brasil, a 57.ª Reunião Anual da União Internacional de Magistrados, sendo possível que de entre as suas deliberações venha a constar uma referência à expulsão dos juízes e procuradores estrangeiros de Timor.

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