Ucrânia: viragem num conflito fora de controlo

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1. A primeira questão é esta: em que medida será a tragédia do voo 17 da Malaysia Airlines um ponto de viragem na crise ucraniana? E em que sentido? Quanto à segunda questão — a dos autores do crime — é sensato esperar por mais dados (escrevo na sexta-feira). A suspeita recai sobre os separatistas pró-russos, o que implicaria a responsabilidade indirecta de Moscovo. Um analista espanhol chega a evocar a hipótese de uma iniciativa dos extremistas pró-russos para comprometerem Vladimir Putin e forçá-lo a manter o seu apoio (El País, 17 de Julho).

A primeira declaração de Putin foi ambígua: “O drama não teria acontecido se Kiev não tivesse recomeçado a guerra no Leste da Ucrânia.” Ou seja, atribui a responsabilidade política a Kiev mas deixa em aberto a possibilidade do míssil ter sido lançado por separatistas pró-russos.

É a primeira questão — a do ponto de viragem — que aqui interessa. O conflito parece fora de controlo. O Leste ucraniano está em guerra. Nas últimas semanas, os pró-russos abateram aviões militares ucranianos e o Presidente Petro Porochenko decidiu passar por cima das várias tréguas e forçar a reocupação das cidades do Leste antes que os separatistas reforcem as suas posições.

Vai o desastre de quinta-feira servir de sinal de alarme e levar a uma negociação “antes que seja tarde de mais” ou, pelo contrário, vai desencadear uma escalada e uma crise internacional? Disse Putin que a catástrofe mostra a urgência de uma “solução política rápida”. O problema é que as soluções aceitáveis por Moscovo e Kiev (e ocidentais) parecem incompatíveis e que até agora têm-se sucedido os erros de cálculo — o mais perigoso factor da generalização de um conflito. Temos de voltar atrás.

2. A crise actual começou com um choque de interesses e vários erros de cálculo. Por iniciativa da Polónia, a União Europeia apostou em criar uma Parceria Oriental englobando seis países que outrora fizeram parte da URSS. Visava estabilizar económica e políticamente a sua periferia oriental. Para Moscovo estava em jogo o seu estatuto de grande potência e um projecto concorrente com o europeu: uma União Euro-Asiática que solidificaria a sua hegemonia sobre o antigo território soviético, que designa por “estrangeiro próximo”. Acontece que esse “estrangeiro próximo” também é o da UE. O confronto tornou-se inevitável.

Hoje, a Parceria Oriental está congelada e igualmente longínqua parece a União Euro-asiática, que não tem sentido sem a Ucrânia. A UE subestimou os interesses e a reacção da Rússia. A Rússia subestimou a Ucrânia.

A partir do momento em que perdeu a influência em Kiev, Putin não desistiu e lançou uma dupla resposta. Anexou a Crimeia, violando uma “linha vermelha” da ordem europeia pós-Ialta — a proibição de mudar as fronteiras pela força. Depois, subiu a parada na Ucrânia encorajando as zonas russófonas do Leste e do Sul a lançarem movimentos de secessão. O objectivo não era “conquistar” mais território ucraniano nem dividir o país: era impor uma federalização, ou melhor, uma “balcanização” que tornaria impotente o poder central de Kiev. Como consequência, consumou-se uma aliança de facto entre Kiev e o Ocidente.

3. O movimento separatista começou por falhar. Não conseguiu uma mobilização de massas. A maioria da população do Leste e do Sul quer manter relações estreitas com Moscovo e é adversa a uma política ocidentalista em Kiev. Mas tem uma identidade ucraniana e não aceita ser integrada na Rússia.

Os rebeldes pró-russos são grupos armados que se apoderaram de várias cidades pela força, graças ao apoio logístico e político da Rússia — e perante a impotência da polícia e do exército ucranianos. Muitos são ex-militares russos. O seu “ministro da defesa” é Igor Guirkin, “Strelkov”, antigo quadro do serviço de informações militares russos (GRU). Têm armamento pesado, tanques e mísseis: uns fornecidos “por russos”, outros capturados em arsenais ucranianos. Não têm problemas de abastecimento: Moscovo não vigia a fronteira e tudo passa, inclusive tanques.

Putin alcançou, após a anexação da Crimeia, uma taxa de aprovação de 83%. Está refém da própria “glória”. Para os “falcões” russos o fim da rebelião separatista na Ucrânia seria “uma traição”. Nos últimos tempos, Putin distanciou-se dos seus rebeldes. Mas nada fez para os obrigar a negociar. Eles são um instrumento da política de desestabilização que Moscovo sempre usou para enfraquecer e domesticar Kiev.

Para especialistas da Ucrânia, como a historiadora Angela Stent ou o analista Sam Charap, as milícias pró-russas ameaçam “tornar-se incontroláveis”. São directamente apoiadas pelos ultranacionalistas russos, como Maxim Kalachnikov ou Alexandre Duguin, que fazem sérias advertências ao Kremlin.

Putin quer evitar sanções “economicamente proibitivas”. Dizem os analistas que, até agora, a sua opção era “ganhar tempo”, prosseguir o desgaste de Kiev até negociar com Porochenko um modus vivendi que satisfaça os interesses básicos de Moscovo: a garantia de não adesão à NATO e a federalização do país.

4. Que muda com os 300 mortos do avião da Malaysia Airlines? Para lá do choque emocional os mortos voltam a iluminar a guerra que se trava na Ucrânia. “Se houver provas sólidas de que os rebeldes foram os autores e de que a arma veio da Rússia, haverá uma fortíssima pressão sobre Putin para contribuir para uma desescalada”, diz à Reuters a analista russa Maria Lipman. “Pode ser um ponto crítico”, frisa Charap. “Pode forçar os russos a um recuo táctico. Não penso que desistam, mas talvez controlem os seus loucos.”

Nada disto assegura uma solução diplomática estável. Passa-se ao terreno da incógnita. Tudo depende da leitura que Putin faça. Pode entender que, com as relações russo-americanas no ponto mais baixo no pós-Guerra Fria, pouco tem a perder em desafiar a pressão ocidental, continuando a apoiar os separatistas. Será mais difícil a alguns países europeus resistir a sanções pesadas contra Moscovo. Mas o Kremlin pode manter a sua aposta na divisão dos interesses nacionais na Europa. A UE quer evitar a todo o custo um conflito geopolítico com a Rússia. De resto, nem a Europa nem os EUA têm uma articulada “política russa”.

Repita-se: é uma situação clássica em que a prudência pode levar a uma negociação e a um compromisso entre dois projectos estratégicos opostos. Ou, inversamente, a um cenário em que os erros de percepção dos vários actores poderão precipitar uma crise internacional de grande dimensão.     

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