Londres indemniza família de dissidente líbio entregue a Khadafi

É apenas um entre os muitos casos de rapto ilegal promovidos pela Administração Bush, mas é o único conhecido que envolve uma família inteira.

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A ida de Blair à Líbia em Março de 2004 foi o início da reaproximação de Khadafi ao Ocidente Jim Watson/AFP

Num comunicado divulgado pelos seus advogados, Saad explica que, por razões financeiras, assinou um acordo que isenta o Governo de assumir responsabilidades. Mas também o fez por ter deixado de acreditar que Londres alguma vez permitisse que a verdade se tornasse pública. “Os meus filhos terão agora a possibilidade de completar a sua educação numa Líbia nova e livre. Vou poder pagar os cuidados médicos de que necessito pelos ferimentos que sofri na prisão”, diz.

“Iniciei este processo acreditando que um julgamento no Reino Unido chegaria à verdade do meu caso. Mas com o Governo a pressionar para que o processo se realize num tribunal secreto, sinto que isso não é o melhor para a minha família”, explicou ainda o antigo dissidente líbio, membro de um grupo islamista da oposição a Muammar Khadafi.

“Já passei por um julgamento secreto, na Líbia de Khadafi. Em muitos aspectos, é tão mau como tortura. Não é uma experiência que eu queira repetir. Ainda agora, o Governo britânico recusa responder a uma pergunta simples: estiveram envolvidos no meu rapto e no rapto da minha mulher e filhos?”

Chegados à Líbia, toda a família esteve presa. A mulher e os filhos de Saadi foram libertados, mas ele passou anos na cadeia, onde foi torturado.

As provas de que os serviços secretos externos britânicos estiveram envolvidos na captura e envio da família para a Líbia só surgiram depois da queda do ditador líbio, em 2011. “Nós [a CIA] sabemos que o seu serviço tem colaborado com os britânicos para a remoção [de Saadi] para Trípoli… o Governo de Hong Kong pode estar em condições de coordenar convosco a entrega [de Saadi] e família”, lê-se numa troca de correspondência entre a CIA e os serviços secretos líbios.

Esta e outras cartas foram encontradas pela Human Rights Watch no escritório do chefe da espionagem de Khadafi, Moussa Koussa, e divulgados pela organização não-governamental de advogados Reprive, que tem defendido dezenas de presos de Guantánamo e de homens alvo das “rendições extraordinárias” promovidas pela Administração do ex-Presidente dos EUA George W. Bush.

O acordo para o pagamento de uma indemnização, confirmado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Londres, é semelhante a vários assinados entre o Governo britânico e antigos prisioneiros em Guantánamo. Pagando, as autoridades evitam processos em tribunais civis onde teriam de revelar informações sobre o nível de cooperação dos serviços secretos britânicos com diferentes ditaduras.

"Acordo do deserto"

O rapto de Saadi aconteceu depois do chamado “acordo no deserto”, quando o antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair ajudou a reintegrar Khadafi na cena internacional na sequência do seu abandono do programa líbio de armas de destruição maciça.

Mas a indeminização a esta família não encerra o potencial de embaraço para Londres. Pormenores sobre a cooperação britânica com o regime do coronel ainda podem vir a lume num outro caso: outro dissidente líbio, Abdul Hakim Belhaj, garante que vai levar o processo até ao fim.

Belhaj, que se envolveu no movimento de jihad internacional e fundou, com outros veteranos da guerra afegã contra os soviéticos, o Grupo Islâmico de Combate Líbio, foi um dos principais chefes militares da oposição que derrotou Khadafi na revolta de 2011. No fim da guerra, assumiu a liderança do Conselho Militar de Trípoli.

Capturado na Tailândia e entregue ao ditador, esteve preso até Março de 2010. Agora está a processar o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros Jack Straw e sir Mark Allen, antigo alto responsável do MI6. A correspondência encontrada pela Human Rights Watch sugere que também aqui houve colaboração entre os EUA e o Reino Unido.
 
 
 
 
 

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