Unidade política em França começa a ruir e é Marine Le Pen quem mais pode ganhar

Confrontado com o seu 11 de Setembro, Hollande assumiu papel de unificador e o rival, Nicolas Sarkozy, adiou querelas em nome do consenso. Mas a Frente Nacional foi excluída da grande marcha de domingo e Le Pen passou ao ataque.

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Stephane de Sakutin/AFP Le Pen atribui o ataque ao “islamismo radical”, uma “ideologia assassina que fez milhares de vítimas"

A França ainda está em choque, num limbo entre o medo e a vontade de montar resistência aos que atacaram um dos valores mais caros da República. Mas à medida que o som das balas se vai dissipando, torna-se claro que o país não sairá incólume do ataque contra o Charlie Hebdo e, da direita à esquerda, todos temem que seja Marine Le Pen, a líder e candidata da Frente Nacional (FN) às presidenciais de 2017, quem poderá tirar mais proveitos políticos da acção dos extremistas.

Num discurso ao país, quarta-feira à noite, o Presidente, François Hollande, insistiu no apelo à unidade: “É a nossa melhor arma, a unidade de todos os cidadãos perante esta tragédia”. Aquele que é o Presidente mais impopular da V República, fustigado pelas suas políticas económicas, foi rápido a tomar as rédeas da gestão da crise, tentando assumir-se como figura unificadora de um país sob ataque. Ainda decorria o socorro às vítimas e Hollande fez questão de visitar a sede do jornal satírico – um gesto imprudente segundo um alto responsável da segurança do Estado ouvido pelo Le Monde. Convocou depois ministros, ordenou que o nível de alerta terrorista fosse elevado para o nível máximo e chamou ao Eliseu os líderes de todas as formações políticas.

“Hollande enfrenta o seu 11 de Setembro”, escreveu o jornal Le Parisien, citando uma fonte próxima do Eliseu, segundo o qual o Presidente entendeu que “não podia deixar que mais ninguém tomasse o seu lugar” na reacção inicial ao massacre. Tal como George W. Bush, em 2001, Hollande sabe que em momentos de convulsão os cidadãos exigem que os seus líderes sejam rápidos a agir e eficazes nas suas decisões, um imperativo ainda maior no caso de um Presidente que, dizem as sondagens, é apontado por ter falta de liderança.

O apelo à união foi seguido por quase todos. Nicolas Sarkozy, que regressou nesta quinta-feira pela primeira vez ao Eliseu desde a derrota nas presidenciais de 2012, mostrou-se invulgarmente conciliador. “Era meu dever responder a este convite” para “mostrar que há um clima de unidade nacional face a um ataque realizado por fanáticos que actuam contra a civilização, a república e as ideias que nos são caras”, afirmou o ex-Presidente, de novo à frente da UMP e candidato mais do que provável da direita às eleições de 2017.

Em nome dessa unidade, Sarkozy anunciou que a UMP participará na “marcha republicana” que os partidos de esquerda convocaram para domingo em Paris, desde que esta se realize num clima de “recolhimento e conciliação”. Mas se é ainda cedo para regressar às querelas políticas, Sarkozy fez questão de pedir “um reforço do dispositivo de vigilância” – a UMP acusou por várias vezes o Governo socialista de minimizar a ameaça terrorista, numa altura em que Paris admite ter cerca de mil jihadistas a combater nas fileiras do autoproclamado Estado Islâmico. “Esta é uma guerra declarada contra a civilização e a civilização tem a responsabilidade de se defender”, afirmou à saída do Eliseu, ecoando pedidos de outros dirigentes da direita para um reforço do aparelho repressivo do Estado.

Mas é sobretudo em Marine Le Pen que os olhos estão postos – o ataque de quarta-feira promete servir de combustível à islamofobia que a Frente Nacional, agora depurada do anti-semitismo que lhe deu origem, tem vindo a alimentar no país europeu com a maior comunidade muçulmana da Europa (7,7% da população). E a líder da FN não tardou a ignorar os apelos de quem lhe pedia para que não misturasse terrorismo com religião, ao atribuir o ataque ao “islamismo radical”, uma “ideologia assassina que fez milhares de vítimas em todo o mundo”. “O tempo da hipocrisia acabou”, afirmou aquela que, segundo sondagens recentes, poderá ser a mais votada na primeira volta das presidenciais de 2017.

“De todos os partidos, a FN é aquela que mais tem a ganhar com esta atrocidade”, disse à agência Bloomberg Jim Shields, especialista em política francesa da Universidade de Birmingham, sublinhando que o ataque “vai ao encontro da agenda anti-imigração e anti-islão” do partido. Numa conferência de imprensa, nesta quinta-feira, Le Pen pediu “actos fortes e eficazes” para combater os radicais, incluindo a retirada da nacionalidade aos jihadistas e a reposição dos controlos nas fronteiras, e reafirmou que, se for eleita, organizará um referendo sobre a reintrodução da pena de morte no país.

E se o tempo desaconselhava polémicas, a primeira estalou já nesta quinta-feira, face à recusa da esquerda em convidar a FN a participar na marcha de domingo. “Não passa de uma manobra para tentar excluir o único movimento político que não tem outra responsabilidade na situação actual”, disse Le Pen ao Le Monde. A UMP criticou a exclusão da extrema-direita, mas o primeiro-ministro Manuel Valls lembrou que a marcha foi organizada “em nome da unidade nacional, mas também da unidade em torno de valores profundamente republicanos, como a tolerância”.

“Com a opinião pública já preparada para aceitar visões negativas do islão, a extrema fragilidade do Governo e da situação social, este pode ser um ponto de viragem”, explicou ao jornal britânico Guardian o analista político Jérôme Sainte-Marie, explicando que, se a FN conseguir “cristalizar” na opinião pública os medos que o islamismo radical e ameaça jihadista despertam, o ataque ao Charlie Hebdo “poderá ter consequências muito graves e duradouras na vida política francesa”.

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