Japão “revê” o pacifismo para ter um novo papel militar no mundo

Militares japoneses poderão socorrer um aliado mesmo que o arquipélago não seja atacado. Visa reforçar a aliança com os EUA e é uma resposta à China. Terá impacto nos equilíbrios do Extremo-Oriente

Foto
Manifestação pacifista contra o governo de Shinzo Abe Yuya Shino/Reuters

O governo japonês de Shinzo Abe tomou esta terça-feira a decisão histórica de “reinterpretar” a Constituição pacifista, de forma a autorizar que as Forças de Autodefesa japonesas (SDF) possam participar em missões fora do arquipélago para ajudar aliados. A decisão estava prevista desde Maio e provocou manifestações pacifistas de protesto. Na segunda-feira, um homem tentou imolar-se pelo fogo em Tóquio. Aumentará a tensão com a China e será reforçada a aliança com os Estados Unidos.

A decisão coincide simbolicamente com o 60º aniversário da criação das SDF e deverá ser aprovada pelo Parlamento, em que o primeiro-ministro Shinzo Abe dispõe de maioria absoluta.

Pelo texto constitucional de 1947, ditado pelos americanos, Tóquio “renunciou para sempre à guerra enquanto direito soberano” e ao “uso da força ou à sua ameaça na resolução dos conflitos entre nações”. O artigo 9 determina categoricamente: “O direito de beligerância não é reconhecido.”

A revisão do estatuto militar do Japão é apoiada pelos EUA e condenada pela China. Um porta-voz do MNE chinês denunciou estas “medidas sem precedentes que modificam substancialmente a política militar do Japão”.

Abe deu garantias aos pacifistas: “O Japão não se implicará numa guerra para defender um país estrangeiro. (...) Sejam quais forem as circunstâncias, protegerei a vida e a existência em paz dos japoneses.”

Mas a “reinterpretação” tem muito maior alcance: os soldados japoneses poderão socorrer forças de um aliado mesmo que o seu território não tenha sido atacado.

Sexto exército do mundo
Após vários programas de rearmamento, as SDF são hoje o sexto exército mais poderoso do mundo. A autorização para participar em missões de guerra no exterior é o “grande passo” após dois pequenos passos. Depois de uma presença inaugural no Camboja, em 1992, forças japoneses participaram em missões de estabilização sob a égide da ONU mas sem combater. A seguir ao 11 de Setembro, uma lei permitiu o seu apoio logístico aos americanos no Afeganistão e, depois, o envio de um contingente para o Iraque — sempre em missão não combatente.

A decisão de “reinterpretar” a Constituição deve-se à quase impossibilidade de rever o artigo 9. A revisão tem de ser pedida por dois terços dos parlamentares das duas câmaras e depois aprovada por referendo. Ora, a aliança governamental não tem os dois-terços. De resto, a maioria dos japoneses permanecem fiéis ao espírito pacifista e rejeitariam provavelmente a revisão do artigo 9 em referendo. Esta revisão é defendida desde 2005 pelo Partido Liberal-Democrata, que Abe hoje chefia, mas foi sempre bloqueada.

O nacionalista Abe serve-se de uma conjuntura favorável criada pelas ameaças balísticas norte-coreanas e, sobretudo, pelo aumento de tensão nos mares da China e à crise aberta pela disputa das ilhas Senkaku (Diaoyu para os chineses). A preocupação em relação à China não afecta apenas os japoneses mas outros países, como o Vietname. As despesas militares cresceram fortemente na região ao longo da última década.

Abe beneficia de uma alta popularidade decorrente da sua política económica. Está a aproveitá-la para fazer um guinada nacionalista. Em Dezembro fez mais uma polémica visita ao santuário de Yasokuni, onde estão alguns criminosos de guerra, provocando a cólera da China e a indignação dos americanos.

A segurança colectiva
A doutrina militar japonesa é defensiva e não se pode falar na “remilitarização” do arquipélago. Mas Tóquio passou a falar em “pacifismo proactivo”. O ponto mais quente diz respeito à passagem da “autodefesa individual” à “autodefesa colectiva” — na prática, à participação em acções militares americanas.

Os americanos querem reforçar o sistema antimísseis balísticos no quadro de uma segurança colectiva englobando não só o Japão como a Coreia do Sul. Os especialistas dão um exemplo: segundo o princípio da autodefesa individual, o Japão não pode interceptar um míssil dirigido contra um alvo americano. Mas se adoptar o princípio da segurança colectiva poderá interceptá-lo.

A prioridade do Japão é conter a potência chinesa que, nos últimos anos, tem mostrado maior agressividade nos mares da China. Por isso Tóquio não pode reduzir a dependência estratégica perante os EUA. O Japão é hoje para os EUA um aliado tão indispensável quanto difícil. Mas também os japoneses têm um problema “existencial”: a credibilidade da aliança nipo-americana. Temem que os EUA possam ser tentados a evitar ficar ‘amarrados’ à aliança no caso de um conflito sino-japonês. A “reinterpretação” deixa uma grande margem de ambiguidade. E, segundo o desígnio de Abe, visará também “emancipar o Japão da ordem do pós-guerra.”

Sugerir correcção
Comentar