Governo francês tenta travar humorista acusado de anti-semitismo

Inquérito aberto contra Dieudonné, o pai do quenelle, um gesto que não pára de dar polémica, por “incitação ao ódio racional”.

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Posters de espectáculos de Dieudonné no Théâtre de la Main d’Or, em Paris Benoit Tessier/Reuters

Quenelle, ou glissant des quenelles, como diz o seu inventor, Dieudonné M’bala M’bala, é um gesto, anti-sistema, segundo o humorista, anti-semita, segundo o Governo francês e parte dos seus seguidores, onde se incluem, por exemplo, membros do partido de extrema-direita Frente Nacional. A procuradoria de Paris abriu esta segunda-feira um inquérito preliminar por “incitação ao ódio racial” contra Dieudonné – o motivo não é o quenelle, mas podia ser.

Dieudonné é conhecido há muitos anos – nos anos 1990, e durante sete anos, teve um duo com um artista judeu, Eli Semour –, o polémico quenelle é mais recente, assim como os seus problemas com a justiça. Enfim, ele já é um pária desde que, em 2003, surgiu com alguns adereços de judeu ultra-ortodoxo e um blusão militar num monólogo que acabava com a saudação nazi.

O quenelle popularizou-se depressa. O próprio Dieudonné estima que mais de 9000 pessoas se tenham fotografado a fazer o quenelle nos últimos meses (todas as fotos são naturalmente publicadas na Internet); algumas são personalidades públicas e algumas pediram desculpa depois de saberem da conotação anti-semita do gesto. O último foi o futebolista Nicolas Anelka, que no sábado festejou assim o segundo golo do West Bromwich contra o West Ham, “uma dedicatória especial ao meu amigo comediante Dieudonné”, explicou no Twitter.

O comediante diz que se trata de “um gesto de insubmissão ao sistema”. O presidente da Liga Internacional Contra o Racismo e o Anti-semitismo, Alain Jakubowicz, descreve-o como uma “saudação nazi invertida, o que significa a sodomização das vítimas” do Holocausto. Quenelles são uns bolinhos fritos, de peixe ou de carne. O gesto, na verdade, assemelha-se bastante ao tradicional manguito. Ouvido pelo Libération, o politólogo Jean-Yves Camus defende que Dieudonné une “um movimento transversal e anti-sistema, que tem no anti-semitismo a sua coluna vertebral” e que “recusa uma ordem mundial dominada pelo eixo Washington-Telavive”.

Em Setembro, já a polémica tinha estalado por causa de dois militares que decidiram fotografar-se a fazer o quenelle diante de uma sinagoga no centro de Paris. “Ofenderam o uniforme e os valores do Exército”, disse na altura o ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian. Dois meses depois, Dieudonné foi condenado a pagar 28 mil euros por difamação, injúria e provocação ao ódio e à descriminação racional por causa de uma canção.

Dieudonné tornou-se demasiado popular. E o Governo francês decidiu que não o pode tolerar e quer tentar proibir os seus espectáculos, o que não se avizinha tarefa fácil. Já em 2010, o Conselho de Estado confirmou o direito do humorista a actuar numa localidade – a autarquia tentou impedir a actuação.

O processo agora iniciado apoia-se num vídeo gravado por um espectador e transmitido depois na France 2 onde Dieudonné ataca um jornalista da rádio pública France Inter, Patrick Cohen. “Estás a ver, se o vento muda, não tenho a certeza se ele tem tempo para fazer a mala. Quando o oiço falar, Patrick Cohen, penso, estás a ver, as câmaras de gás… Que pena.”

Os ataques do humorista contra Cohen são frequentes desde que o jornalista perguntou ao apresentador de um programa de televisão se ele tencionava continuar a convidar “personalidades como Tariq Ramadan, Dieudonné, Alain Soral”. Ramadan é um académico muçulmano, suíço de origem egípcia, habituado a enfrentar suspeitas (é tratado como ocidental pelos árabes e muitos ocidentais acusam-no de ter uma agenda escondida de islamização da Europa). Soral, um ensaísta que diz estar na avant-garde política da sociedade francesa, é criticado pelo seu anti-semitismo e considerado ideólogo da extrema-direita. Também ele fez o quenelle, escolheu o Memorial do Holocausto em Berlim.

Dieudonné, filho de um camaronês e de uma francesa da Bretanha, defende-se sempre com a liberdade de expressão. Nos últimos anos aproximou-se do antigo líder da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen, padrinho do seu quarto filho, nascido em 2008. Em 2009, o humorista quis candidatar-se ao Parlamento Europeu à frente de uma lista assumidamente anti-sionista.

O processo agora iniciado tem grandes probabilidades de chocar com a Constituição Francesa ou com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O ministro do Interior, Manuel Valls, diz-se decidido a “romper a mecânica do ódio” e quer “proibir reuniões públicas que já não pertencem à dimensão criativa”, querendo com isto dizer que vai defender o risco de provocação de distúrbios públicos dos espectáculos de Dieudonné. 
 
 
 
 

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