Fechem Guantánamo e acabem com a hipocrisia de direitos humanos

Fechar Guantánamo tem de significar o fim das violações de direitos humanos que a prisão representa.

Um dos primeiros actos oficiais do Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, assim que assumiu o mandato em Janeiro de 2009, foi assinar a ordem executiva de fecho da prisão militar norte-americana na baía de Guantánamo, em Cuba, no período máximo de um ano.

Esta ordem trazia uma promessa de mudança, quando tinham passado já oito anos desde que os primeiros detidos foram levados para Guantánamo, em 2002 (20 homens capturados em combates no Afeganistão). Mas a incapacidade daquela ordem executiva em reconhecer as obrigações dos Estados Unidos em matéria de direitos humanos, a par da adoção por parte da Administração de Obama do muito imperfeito enquadramento da “lei da guerra”, herdado do antecessor, não trouxe o fim das detenções em Guantánamo.

A 22 de Janeiro contam-se cinco anos desde que o Presidente Obama assinou a ordem executiva de encerramento daquela prisão. E o campo de detenção militar continua até hoje a funcionar num vazio total de direitos humanos.

As detenções daqueles que se encontram em Guantánamo são uma ofensa aos princípios internacionais de direitos humanos e minam a credibilidade dos Estados Unidos. Com a prisão a entrar já no 13.º ano de funcionamento, o mundo inteiro tem de repreender os Estados Unidos por este falhanço miserável em respeitar os padrões internacionais de direitos humanos que tantas vezes exigem que outros cumpram.

Passaram-se 12 anos desde que os primeiros detidos chegaram a Guantánamo, desembarcando de aviões e amarrados como carga. Hoje, continuam ali presas 150 pessoas, a maioria detida sem que tenham sido formuladas contra elas quaisquer acusações nem sujeitas a julgamento.

Entre os detidos que ainda estão em Guantánamo encontram-se suspeitos de terrorismo, indivíduos que deveriam ter sido levados a julgamento sob acusações relacionadas com os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, e outros abusos graves de direitos humanos. O respeito pelo direito das vítimas à justiça traduzir-se-ia em deduzir acusações contra aqueles suspeitos e levá-los a tribunal em julgamentos justos em tribunais civis há já muitos anos.

Mas apesar da decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos – há cinco anos e meio – de que os detidos de Guantánamo têm o direito constitucional a audiências expeditas e diligentes para avaliar a legalidade das suas detenções, algumas destas pessoas não obtiveram sequer uma ordem judicial de habeas corpus [ordem que determina que uma pessoa detida tem de ser levada a tribunal ou perante um juiz, sob pena de a sua detenção ser ilegal].

Na lógica legal perversa de Guantánamo, até mesmo uma decisão judicial sustentando que a detenção de um indivíduo é ilegal pode não chegar para que essa pessoa seja libertada. A transferência, no mês passado para a Eslováquia, de três cidadãos chineses uigures [minoria turcófona e muçulmana, que se concentra na região do extremo ocidental da China] ocorreu mais de cinco anos depois de um juiz federal norte-americano ter decretado que aquelas detenções eram ilegais.

Se os Estados Unidos fizessem aquilo que instam outros países a fazer – aceitar em território norte-americano detidos com ordem de libertação e que não podem ser repatriados – aqueles três cidadãos chineses uigures podiam ter sido libertados imediatamente após ter sido emitida a decisão judicial.

Mais de 70 outros detidos em Guantánamo, a maioria oriundos do Iémen, receberam por seu lado “aprovação de transferência”, mas as frágeis condições de segurança nos seus países de origem, a par de outras circunstâncias, têm sido usadas como argumentos por parte da Administração de Obama para adiar a sua libertação.

Alguns dos detidos na prisão enfrentam julgamentos por uma comissão militar que nem tão-pouco funciona de acordo com os padrões internacionais de um julgamento justo. Seis destes suspeitos podem ser condenados à pena de morte. E dos quase 800 detidos que já estiveram em Guantánamo, apenas sete (menos de um por cento) foram condenados por aquela comissão militar – cinco deles declarando-se culpados ao abrigo de acordos extrajudiciais que lhes garantiram uma saída da base prisional.

Entretanto, a total ausência de responsabilização, de verdade e de reparação das violações de direitos humanos cometidas contra antigos e atuais detidos em Guantánamo constitui uma injustiça sórdida e infeciosa que coloca os Estados Unidos numa situação de séria violação das suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.

Os detidos em Guantánamo foram torturados e sujeitos a tratamento desumano, tanto em Guantánamo como em outros locais sob tutela norte-americana antes de serem enviados para a base militar. Foram submetidos a práticas como o water-boarding [simulação de afogamento], isolamentos prolongados e, mais recentemente, procedimentos de alimentação forçada em resposta a um protesto de greve de fome levado a cabo por numerosos presos contra a sua prolongada detenção.

Nove detidos morreram na prisão de Guantánamo sob a tutela das autoridades norte-americanas, dois por causas naturais e sete por suicídio.

Se um qualquer outro país que não os Estados Unidos fosse responsável por este vazio absoluto de direitos humanos, é certo e seguro que seria alvo de severas críticas por parte das autoridades norte-americanas. Porém, os Estados Unidos têm continuado a permitir as detenções em Guantánamo, assim como a ausência de responsabilização pelas violações de direitos humanos, ao mesmo tempo que se vangloriam de cumprirem os padrões de direitos humanos.

Esta duplicidade de pesos e medidas não passou despercebida. Outros governos, peritos das Nações Unidas e organizações não-governamentais têm instado ao fim das detenções em Guantánamo.

Até mesmo o primeiro comandante do complexo prisional militar, o major-general Michael Lehnert, agora reformado, avaliou que a prisão “nunca devia ter sido aberta”. Lehnert considera que as detenções e o recurso à tortura em Guantánamo fizeram com que os Estados Unidos perdessem as boas graças e simpatia com que o mundo os olhava logo após os ataques terroristas do 11 de setembro.

Fechar Guantánamo tem de significar o fim das violações de direitos humanos que a prisão representa. Limitarem-se a transferir os detidos para outra unidade prisional é inaceitável. O mundo tem de pressionar os Estados Unidos a abandonarem a defeituosa “lei da guerra” e o Congresso norte-americano e a Administração de Obama têm de adotar e cumprir uma estratégia de antiterrorismo que respeite em pleno os padrões e a legislação internacional.

O caso de Guantánamo não fica encerrado, de resto, sem que haja total responsabilização pelas violações de direitos humanos, incluindo os crimes consagrados na legislação internacional, que foram cometidas na base e nos demais locais onde os Estados Unidos levam a cabo a “guerra total ao terrorismo”.

Fechar a prisão militar não trará essa responsabilização de um dia para outro. Mas fazê-lo continua a ser um passo importante – e absolutamente necessário – na direção certa.

Directora do departamento Américas da Amnistia Internacional
 
 
 
 
 

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