Dois anos depois, o mais novo país do mundo está à beira da guerra

Uma jogada de poder mal calculada pode atirar o Sudão do Sul para uma dramática guerra civil, pouco mais de dois anos depois da independência.

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Cerca de 16 mil pessoas procuraram refúgio nas instalações da ONU Goran Tomasevic/Reuters

O Sudão do Sul vive dias que se assemelham em demasia ao seu passado recente. Depois de décadas de violência e instabilidade, em 2011 chegou a independência. Desde os anos 1950, tinham-se sucedido “duas gerações de insegurança”, como escreveu o The Guardian, que se saldaram em dois milhões de mortos e quatro milhões de desalojados. Com o regresso dos combates à região, agora entre aqueles que lutaram do mesmo lado, pode ser a vez de uma terceira geração conhecer a guerra.

Tudo começou na madrugada de domingo, quando os primeiros tiros foram ouvidos na capital, Juba. A versão oficial foi dada pelo Presidente, Salva Kiir: tratou-se de um golpe de Estado orquestrado pelo ex-vice-Presidente, Riek Machar, um “profeta da desgraça”. À explicação oficial seguiu-se, apenas dois depois, o desmentido oficial. Machar, em entrevista ao Sudan Tribune, negou qualquer conspiração, afirmando ter-se tratado de um “desentendimento” entre membros da guarda presidencial.

A intenção de Kiir foi a de colocar sob suspeita o seu antigo aliado, que se assume como o principal adversário político nas eleições presidenciais de 2015. Por seu turno, Machar, aproveitando o caos dos últimos dias, pediu na quinta-feira ao Exército de Libertação do Povo Sudanês (SPLA, na sigla inglesa) que depusesse Kiir.

Entre os comunicados de parte a parte a violência explodiu pelas ruas de Juba, e estendeu-se a outras partes do país, ligeiramente maior do que a Península Ibérica. A ONU fala entre 400 e 500 mortos nos últimos cinco dias e mais de 800 feridos. Cerca de 16 mil pessoas procuraram refúgio em várias instalações da organização. Num país que ainda não celebrou três anos há “potencial para uma guerra civil”, afirmou o embaixador francês na ONU, Gérard Araud, que ocupa a presidência rotativa do Conselho de Segurança. Na quinta-feira, foi a vez da Alta Comissária para os Direitos do Homem da ONU, Navi Pillay, vir alertar para o “risco de o conflito assumir uma dimensão étnica.” Muitos estrangeiros já começaram a abandonar o país.

E Barack Obama, Presidente dos EUA, avisou que o país está "perto do precipício" de uma guerra civil. Numa carta enviada ao Congresso, Obama revelou que enviou 45 militares para proteger a propriedade e os cidadãos americanos no Sudão do Sul.

Jogos de poder
Já nos tempos em que o Império Britânico dominava os territórios em torno do rio Nilo, o sul do Sudão se distinguia do Norte, começando logo pela geografia. A Norte, é o deserto que domina, enquanto o Sul tem terrenos férteis, pântanos e florestas tropicais. Mas é na diversidade cultural e étnica que as diferenças são mais relevantes. O Sudão é maioritariamente composto por uma população muçulmana falante de árabe, enquanto o novo país, com pouco mais de 11 milhões de pessoas, é um mosaico étnico, dividido em centenas de pequenas tribos.

Grande parte das motivações dos combates que estalaram nos últimos dias assume linhas étnicas. Os Dinka, tribo a que pertence o Presidente, são maioritários e dominam o Governo e o exército. Machar pertence aos Nuer, que são apenas 5% da população. A obtenção da independência veio colocar a nu as divisões internas do país, que nem mesmo durante a guerra com o Sudão se manteve totalmente unido. O próprio Machar chegou a revoltar-se contra o SPLA, no início dos anos 1990, fundando um grupo que se juntou a Cartum. Anos mais tarde, Machar reconcilia-se com Kiir e o seu grupo é reintegrado nas fileiras do SPLA.

Mas é no campo dos interesses pessoais que tudo se joga. Por trás do conflito que agora estala está “uma competição pelo poder e também pelos recursos gerados pelo poder”, explicou à rádio RFI o director do Centro Nacional de Investigação Científica francês, Marc Lavergne.

Para além da dimensão étnica, as largas reservas de petróleo do Sudão do Sul tornaram-se também um factor de instabilidade, apesar de representarem 98% das receitas do Estado. Depois de 2011, o Sul ficou com 75% das reservas que antes serviam o Sudão, mas a interdependência entre os dois países manteve-se. Os únicos oleodutos que servem o Sudão do Sul passam pelos vizinhos do norte até chegarem a Porto Sudão.

A relação forçada com o antigo inimigo é marcada por crises pontuais, como a que levou à suspensão da exploração de petróleo pelo Sudão do Sul entre Janeiro de 2012 e Abril de 2013. Para Cartum qualquer sinal de instabilidade nos seus vizinhos joga a seu favor e é frequente o seu apoio a movimentos rebeldes que afrontem o Governo do sul. O Sudão “sabe utilizar todas as oportunidades para tentar desestabilizar o Sudão do Sul, na medida em que apoia movimentos rebeldes perto da fronteira”, notou Lavergne.

Com menos de três anos, o Sudão do Sul, campeão da mortalidade infantil, caminha a passos largos para a categoria de Estado falhado, tendo como pano de fundo mesquinhos jogos de poder. Com graves carências hospitalares, quase sem estradas e áreas em que a lei tribal se sobrepõe à do Estado, uma guerra civil apenas poderá precipitar a catástrofe.

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