A desEuropa (II Acto)

Ceder à sereia envenenada da escalada verbal é pisar de novo os umbrais do trilho ou do calvário da DesEuropa.

1. A 6 de Dezembro de 2011, escrevi aqui um artigo intitulado a “A DesEuropa: o dia seguinte ao dia seguinte”. Na altura, o fim da moeda única era tomado como uma probabilidade séria e o dia seguinte seria justamente o dia em que essa probabilidade se verificaria.

Já o dia seguinte ao dia seguinte seria um passo adiante: o fim da União Europeia (UE) tal como a conhecemos. O desmantelamento do euro resultaria de uma enorme desconfiança entre os Estados e os povos europeus e agravá-la-ia. Essa desconfiança estava, à época, ainda bem fresca na crise do pepino espanhol, em que se imputou à incúria (em sede de segurança alimentar) dos povos do Sul uma série de mortes na região de Bremen, que afinal tinham origem em falhas de explorações agrícolas alemãs. O recrudescimento da desconfiança, se porfiasse e continuasse, despertaria o carrossel de ressentimentos, hostilidades e rivalidades que marcam a nossa história comum. E com esse descarrilamento seria quase impossível conservar a UE com a espessura que faz dela um espaço de paz e de estabilidade (e de razoável prosperidade). As velhas rivalidades viriam ao de cima, os traumas colectivos emergiriam, os processos de radicalização política progrediriam e as reivindicações de autodeterminação e de correcção de fronteiras, amalgamadas em nacionalismos empolados e insuflados, fariam o seu caminho mais ou menos triunfal. O dia seguinte ao dia seguinte não seria de alívio, mas de aflição.

2. Depois disso, inúmeras vezes voltei ao tema. Insisti muito na cartografia das incertezas e dos riscos europeus, que, em debates e em alguns escritos, resumi a três. Primeiro, o risco do aumento exponencial da desconfiança entre os governos dos parceiros europeus, eventualmente contagiável às respectivas opiniões públicas ou aos próprios povos. Segundo, a ameaça da emergência dos populismos de direita e de esquerda; os de direita, mais a norte, e os de esquerda, mais a sul. Entre eles cabia não apenas a Frente Nacional francesa, mas também o UKIP (que em Portugal, mercê do seu antieuropeísmo primário, goza de uma inacreditável tolerância) ou o Syriza (que, entre nós, era assaz acarinhado – embora não tanto como hoje…). Terceiro, o risco de implosão de Estados, com as reivindicações de independência da Escócia, da Flandres, da Padânia, da Catalunha e do País Basco (para falar apenas no Ocidente europeu, onde tudo pareceria menos verosímil). Quem julga que o referendo escocês aquietou as coisas engana-se redondamente, mesmo no caso britânico (bastará esperar pelos resultados das eleições de Maio…). Olhe-se também Espanha, com as eleições catalãs de Setembro ou uma eventual vitória do Podemos nas eleições gerais (muito equívoco no tema das aspirações catalã e basca…), para logo se perceber que nenhum cenário está fechado.

3. Tendo em conta este xadrez político, mais uma vez assente em equilíbrios finos e frágeis, muitos podem pensar que a resposta da UE, da zona euro e até de Portugal ao novo posicionamento político da Grécia deveria ser diferente. Creio que, no plano estritamente substantivo, a resposta das instituições, dos Estados-membros e de Portugal, para preservar aqueles equilíbrios e um módico de coesão, não podia nem devia ser outra. Muitos são os que entendem que Portugal e, já agora, a Espanha, a Irlanda, a Itália, a França, nesta nova conjuntura, deveriam ter concertado uma posição com o novo Governo grego. Não posso estar mais em desacordo. Sempre fui favorável a que Portugal, em pleno transe e devir da crise das dívidas soberanas, tivesse e mantivesse um diálogo constante com as capitais europeias e, nomeadamente, com os restantes países sob ajustamento. Como várias vezes disse e escrevi, talvez aí pudéssemos ter feito mais – embora, estou certo, com resultados modestos. Mas, neste exacto momento, na altura em que a Grécia veio reclamar o perdão da dívida e a conferência de renegociação, em que tem um governo que, sendo totalmente legítimo, se filia numa corrente radical, populista e nacionalista, seria um erro criar uma frente luso-grega. Sabendo-se que havia (e subsiste…) o risco de a Grécia sair da zona euro, só de um governo português irresponsável, capaz de deitar tudo a perder, se poderia esperar uma atitude de cooperação activa com o executivo helénico. Tanto mais que, em bom rigor – e tendo em conta o seu historial antieuro e anti-NATO e as simpatias pró-russas –, ainda não se perceberam as verdadeiras intenções dos novos senhores de Atenas.

4. Entretanto, poucos o sublinham, mas houve até agora um enorme ganho de confiança entre os Estados. E esse reganhar da confiança é uma das explicações para algumas das mudanças salutares na política europeia e para uma vontade de reforçar os mecanismos de integração na União Económica e Monetária. Alguns dirigentes do PS saúdam mudanças em orientações do BCE e da Comissão e dizem que elas são uma derrota do Governo português. O que eles não percebem (ou não querem perceber) é que sem o caminho que se fez até aqui – em ordem a reganhar a confiança dos parceiros europeus – essas mudanças de orientação não teriam sido possíveis. Elas são o resultado directo e imediato da confiança que países como Portugal, a Espanha e a Irlanda foram capazes de incutir, suscitar e devolver.

5. Tudo isto dito, redito e assumido, importa não confundir os planos. O risco de afrontamento directo e individualizado entre Estados-membros, com diabolização mútua, é o caminho inverso àquele de quem tudo fez para restaurar a confiança. Perante a provocação ou o remoque, a melhor resposta é o silêncio apaziguador e a pedagogia do cumprimento do acordado. Responder em moeda similar ou retorquir é fazer o jogo de quem aposta na vitimização e na radicalização. Ceder à sereia envenenada da escalada verbal é pisar de novo os umbrais do trilho ou do calvário da DesEuropa.

Deputado europeu (PSD) vice-presidente do Grupo Parlamentar do PPE

paulo.rangel@europarl.europa.eu

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