Esperteza luxemburguesa

O dumping fiscal não é só imoral: distorce o mercado interno e constitui uma ameaça ao projecto europeu.

Os chamados "LuxLeaks", expondo acordos fiscais secretos entre o Governo luxemburguês e companhias estrangeiras, vieram provar o que não era, realmente, novidade para ninguém, embora fosse negado pelas autoridades daquele país: que o Luxemburgo funciona como um paraíso fiscal no coração da Europa, permitindo a centenas de multinacionais e outras empresas não pagar milhares de milhões em impostos por lucros obtidos noutros países, incluindo nos restantes Estados-membros da UE.

Aproveitando-se da respeitabilidade como fundador da UE e integrador do mercado interno, o Luxemburgo acolheu esquemas e redes de empréstimos dentro de empresas de um mesmo grupo, entre outros mecanismos, reduzindo a quase nada a tributação desses grupos. O sistema fiscal do Luxemburgo atraiu, assim, mais de 40.000 companhias holding – em grande parte de outros Estados-membros – e criou milhares de empregos para a sua população. Com apenas cerca de 500 mil habitantes, o Luxemburgo é hoje o Estado com o maior PIB per capita do mundo, mas é também um Estado capturado pela Banca, pela Finança e pela criminalidade que as permeia e instrumentaliza.

Só isso explica a resistência que o Luxemburgo mostrou, durante anos (acompanhado pela Áustria), à proposta da Comissão Europeia (CE) para rever a directiva relativa à tributação dos rendimentos da poupança, que vem limitar o segredo bancário no bloco dos 28, permitindo a troca automática de informação sobre contas bancárias e outros activos entre as autoridades dos Estados-membros.

Um paraíso fiscal como o Luxemburgo só existe plantado no coração da Europa devido à falta de harmonização fiscal na zona euro e na UE, tanto a nível de taxa mínima de tributação de empresas, como na fixação de uma base tributável comum. Mesmo depois da chamada "crise das dívidas soberanas", vários Governos da zona euro procuram guardar para o plano nacional a exclusividade de decidir sobre matéria fiscal.

Ora o Luxemburgo não é o único paraíso fiscal na UE: acordos celebrados com grandes multinacionais pela Irlanda e pela Holanda (a par do Luxemburgo) estão a ser investigados pela Comissão Europeia, porque podem equiparar-se a "ajudas de Estado", ilegais face ao direito europeu.

Foi exactamente para beneficiar de um regime fiscal mais favorável que muitas empresas portuguesas, incluindo a maioria das cotadas em bolsa, mudaram a sua sede para a Holanda. Outras abriram sedes, filiais ou meras caixas de correio no Luxemburgo para fugir à tributação nacional e desviar milhares de milhões de Portugal. Como o BES/GES.

A investigação à criminalidade fiscal e financeira no universo BES/GES ainda vai no adro, mas uma auditoria da Price Waterhouse Coopers já revelou que, através de quatro offshores na ilhas britânicas Jersey e Guernsey, Ricardo Salgado desviou em poucos dias centenas de milhões do BES para o exterior, já depois de o Banco de Portugal ordenar a mudança de administração. A Price Waterhouse Coopers foi auditora do BES/GES até 2002 e hoje trabalha na auditoria forense ao BES para o Novo Banco, por indicação do Banco de Portugal, de quem é também auditora oficial. Price Waterhouse Coopers que – por acaso, certamente! – acaba de ganhar dois novos sócios em dois quadros que saem do topo do departamento de supervisão prudencial do Banco de Portugal (que devia ter supervisionado a tempo o BES): Luís Costa Ferreira e Pedro Machado. E Price Waterhouse Coopers essa que, não por acaso, foi o principal agente da celebração da maior parte dos contratos ditos de planeamento fiscal celebrados entre centenas de multinacionais e o Governo do Luxemburgo, segundo revelam os "Luxleaks": querem pescadinha-de-rabo-na-boca mais promíscua no mar da eurofinança e da fiscalidade na UE?

A selva fiscal em que os Estados-membros da UE competem entre si, em corrida para o abismo de oferecer taxas cada vez mais baixas às grandes empresas, supostamente para atrair investimento, só pode ter uma consequência: que sejam os cidadãos comuns, as classes médias e os trabalhadores a pagar a redução das receitas públicas. O dumping fiscal não é só imoral: distorce o mercado interno, constitui uma ameaça ao projecto europeu, aos seus valores e princípios, e compromete a sustentabilidade económica e social na Europa e globalmente. E arrasa os povos e a confiança na UE em Estados, como o nosso, onde o Governo esmifra em impostos as classes médias e PME e concede benefícios, isenções e amnistias fiscais a grupos empresariais useiros e vezeiros nas vias luxemburguesas para a elisão e evasão fiscais.

Jean-Claude Juncker foi artífice desta "esperteza luxemburguesa", como ministro das Finanças e  primeiro-ministro do Luxemburgo durante décadas, ficando terrivelmente descredibilizado pelos "LuxLeaks" uma semana após ter tomado posse como presidente da Comissão Europeia. Juncker obteve o apoio dos socialistas e democratas europeus sob o compromisso de combater a evasão fiscal na UE e de se bater pela harmonização fiscal. Há duas semanas interpelei-o a agir por provir de um "quase paraíso fiscal": os "LuxLeaks" demonstram que o "quase" estava a mais e intensificaram a pressão sobre Juncker e a CE para que respondam diante do PE, o que aconteceu nesta semana, e, sobretudo, para que actuem.

Pedir a demissão de Juncker agora só atrasa a tomada de medidas: o que importa é forçá-lo a arrepiar caminho, na lógica de que "nada melhor do que um caçador furtivo para dar caça aos caçadores furtivos". Juncker tem de demonstrar por acção imediata – incluindo procedimento contra o seu próprio país – que defende o interesse e o projecto europeu, avançando drasticamente contra a concorrência fiscal, contra o planeamento fiscal agressivo das grandes empresas e a opacidade do sector empresarial e financeiro na UE.

Eurodeputada no grupo dos socialistas e democratas no Parlamento Europeu

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