Dr. Estranho Amor...

...Ou como eu aprendi a não me preocupar e a amar o Euro

Os mais cinéfilos reconhecerão no título adulterado deste artigo o filme de 1964 Dr. Estranho Amor. Ou como eu aprendi a não me preocupar e a amar a Bomba, de Stanley Kubrick, e em que o cómico Peter Sellers encarna diferentes personagens, do Presidente dos Estados Unidos, ao aviador inglês da Royal Air Force e à personagem que dá nome ao filme, o Dr. Estranho Amor, um cientista nazi em cadeira de rodas, mas que embora debilitado fisicamente não o está mentalmente, e que aconselha sempre no sentido de tudo destruir, pois "Eles" (isto é, a elite política e militar reunida no Bunker Presidencial e a população a escolher entre aquela de melhores características genéticas para assegurar a sobrevivência da espécie) serão salvos para reconstruir de novo a Humanidade. Isto, porque o desastre a desencadear-se por via da máquina do juízo final será já imparável - na realidade não é imparável, mas os de decisores aconselhados pelo Dr. Estranho Amor sucumbem à sedução das suas palavras, enquando passo a passo e em funçao de decisões racionais, caminham solene e decidamente para o abismo, a ponto de achar essa a escolha mais racional.

A pergunta é então, o que tem esta descrição a ver com o que se passa actualmente com as reuniões do Eurogrupo e do Conselho - dando ainda um certo beneficio da dúvida à Comissão neste processo, porventura muito fruto de ninguém lhe ligar muito no meio da loucura desenfreada das últimas semanas, a ponto de o jornal El Pais descrever uma reunião em que os gritos e as palavras inflamadas parecem ter substituído a normal calma do Presidente e dos comissários, no afirmar que a Comissão nada teve a ver com a decisão relativa a Chipre e ao confisco inicial dos depósitos de valor inferior a 100.000 euros.

O filme Dr. Estranho Amor trata na forma de comédia assuntos normalmente demasiado sérios para estarem no centro das conversas de amigos e família, mas que os cómicos sabem muito bem capturar. Aliás, no meio do estado de loucura que a Europa vive, não é de estranhar que os cómicos ganhem eleições em Itália. Pois, também não será difícil imaginar que no actual estado das coisas, se grandes cómicos portugueses, como os Gato Fedorento, lançassem uma candidatura que procurasse debater problemas e soluções para Portugal ela poderia muito bem ultrapassar os votos de um dos partidos de menor representação parlamentar. Tal poderia suceder em mais países europeus do que a Itália, porque a confiança entre as pessoas e as instituições políticas (partidos, governos, parlamentos) estabelece-se em função daquilo que o indivíduo apercebe como situação real (sejam problemas ou soluções) e o que se comunica no espaço público. Ora como o discurso político - embora com algumas, mas poucas excepções - no caso de quem governa tende a tentar diminuir ou desvalorizar os problemas e no caso das oposições não pode, no quadro das estratégias políticas fora de período eleitoral, ir muito além de propostas de solucões generalistas para as situações especificas que identifica, abre-se o espaço para o discurso de crítica social dos cómicos conseguir estar cada vez mais próximo das pessoas do que o discurso político consegue. Ou seja, o discurso cómico aponta os problemas e, como também não se espera que apresente soluções, pelo menos não parece nem incompleto nem hipócrita, gerando portanto mais confiança do que o discurso político consegue junto dos cidadãos.

Mas o Dr. Estranho Amor para além de nos permitir demonstrar como o discurso político e o discurso da comédia estão cada vez são mais próximos e como, o primeiro, erode cada vez mais a confiança dos cidadãos nas instituições políticas herdadas na Europa do pós guerra (e em Portugal nas herdadas do pós 25 de Abril), serve também para nos lembrar como a Comunidade Económica Europeia e, depois, a União Europeia foram construídas com base na confiança e estão a ser destruídas pela incapacidade de a manter entre o Norte e o Sul e também entre a direita, cada vez menos europeia, e a esquerda, cada vez mais ciente que ou algo muda por acção dos homens e mulheres nos diferentes países ou da convulsão social passaremos para a violência limitada, primeiro em grupos politizados extremistas, de ênfase nacional, e mais tarde, como tende a ser visível historicamente, entre Estados ou entre estes e as suas regiões.

Chegado a este momento pode ser que o leitor pense que há muito a perder (embora muitas pessoas já tenham perdido muito e acreditem agora que depois da perda de pensões se segue a perda das poupanças) e que as pessoas são racionais e aguentarão - e este é um argumento válido, embora curto, pois mesmo sociologicamente é demonstrável que a crise não tem de obrigatóriamente de gerar violência generalizada, embora por vezes tal ocorra.

No entanto, deveríamos - isto é, os que lideram ou os que pertencem às elites criadas nas instituições do passado recente nacional e europeu - estar muito mais preocupados com a racionalidade das elites governantes e financeiras do que com a racionalidade da população em geral, pois é das primeiras que vem o maior perigo.

Muitos amigos e conhecidos contrapõem a este argumento que ninguem no seu perfeito juízo quererá deitar pela janela fora a paz, o bem estar, a Europa que nós construímos, mas eu contra-argumento sempre, tal como aqui o faço, que o absurdo da guerra, da política e da diplomacia inócuas e alicerçadas no menor dos males são baseadas em decisões sempre racionais, para quem as toma, e irracionais, para quem as vê na totalidade das consequências. Exemplo claro têm sido as decisões e declarações do, rapidamente caído em desgraça, presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijssbloen, sobre como resolver a crise cipriota.

Ou seja, para atender áquilo que o presidente do Eurogrupo e os ministros das Finanças acreditam ser a psicologia dos eleitores do norte-europeu, tomam-se decisões que são racionais na lógica da promessa eleitoral, que pretende cativar a confiança de quem vive próximo ou acima do Reno, mas que, por sua vez, ateiam fogo a todas as pessoas que têm dinheiro nos bancos Europeus - isto é muitos mais do que os que votam em eleições, mesmo na totalidade dos países europeus.

Se a esta "racionalidade de curto-prazo" juntarmos as consequências inesperadas da tomada de decisões na sociedade em rede em que vivemos (que tudo liga e a tudo responde em matéria de nano-segundos), se tivermos em conta a bipolaridade e a loucura sempre possível de surgir estatisticamente também nas lideranças e, por fim, a herança da desconfiança, paranóia e do medo baseada nos estereótipos do que é um alemão, um cipriota, um inglês, um francês, um italiano, um espanhol, um português ou um russo (sim, os nossos vizinhos a leste), rapidamente veremos que aquilo que separa a vida que temos de um mundo à beira do desastre pode ser muito curta e que estamos a brincar com fósforos no paiol dos assuntos sérios.

O filme Dr. Estranho Amor decorre numa base área em estado de incomunicabilidade com o mundo exterior e num bunker da presidência americana, portanto ninguém está a par do que se prepara e, como sabemos, aquilo que não se sabe dificilmente se pode mudar nem impedir. As reuniões de ministros de Finanças da zona euro e de todos os seus co-responsáveis (dentro e fora do euro, da Inglaterra à Rússia e do FMI ao BCE ) são noticiadas e debatidas até à exaustão e, por isso, embora critiquemos o que lá se passa, ainda achamos que aquelas pessoas devem saber algo do que fazem - mas isso pode ser um erro fatal, porque tudo indica o contrário.

Precisamos rapidamente de um Stanley Kubrick e de um Peter Selers que nos mostre o ridículo destas personagens (que são também actores sociais de poder desproporcionado) e colocar a nu a pobreza desmedida de visão destes decisores e a loucura e paranóia que, em ambientes fechados, leva muitas vezes quem acha que tem de salvar o "mundo" a decidir racionalmente o seu fim.

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