Delinquentes

Crime é o comportamento humano que uma lei anterior à sua prática declarou passível de uma pena.

Falo como jurista módico que fui e nem é preciso ser um emérito catedrático para entender que é, pura e simplesmente, criminoso o que a União Europeia (UE) tem submetido alguns dos seus estados. Não apenas politicamente, mas também no sentido restrito: crime, facto que cabe no que as leis penais desenham como matéria criminal.

O que agora a UE, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu impuseram a uma pequena ilha do Mediterrâneo – Chipre – constitui um acto criminoso que se chama furto, se não até um roubo. Ou abuso de confiança.

Angela Merkel, nova imperatriz da Europa, esqueceu – se alguma vez teve presente – não só os trágicos acontecimentos da Segunda Guerra como ainda os ensinamentos que o também seu compatriota, escritor e filósofo, Thomas Mann, no seu discurso de 1953, em Hamburgo, transmitiu: “…os alemães não devem voltar nunca mais a aspirar a uma Europa alemã…”. E, num ápice, lateralizou, que lhe convém, o acordo de Londres de 1953.

Nessa altura, 26 países (Grécia, Espanha, Itália, Irlanda e os restantes) perdoaram a dívida de milhões de dólares à Alemanha, permitiram-lhe longos prazos de amortização, condicionaram o pagamento das prestações à sua capacidade financeira, sendo que, e apesar disso, por várias vezes, a Alemanha não cumpriu o acordado. E as razões de uma dívida monstruosa como era a da Alemanha, não vinha de má gestão, de más políticas, mas antes de uma guerra devastadora que dizimou milhões de seres humanos. Há, apesar de tudo, um grande distanciamento.

O ano de 1953 não se perdeu, propriamente, nos confins da História ou nos primórdios da Humanidade. Está ainda ali na porta de trás do nosso tempo e do de Angela Merkel, que entende que a Europa é dela porque a herdou, comprou e, para tirar dúvidas, a conquistou. Como o outro diria!

E, já que assim supõe, impôs aos “parceiros” da eurolândia que se subordinasse o resgate financeiro de Chipre à cobrança de uma taxa de 6,75% aos depósitos bancários inferiores a 100.000 euros e de 9,99% aos que ficarem acima de tal patamar.

E o Governo de Chipre, ainda de tenra idade, já assimilou as regras: subordinação e ajoelhar às normas de Angela Merkel. Sem lei alguma, congelou as contas bancárias dos cidadãos cipriotas, encerrando os bancos. Que se saiba, os depósitos bancários têm um fundamento jurídico, um contrato: o banco guarda o dinheiro, é só fiel depositário, deve devolvê-lo quando e sempre que o cliente quiser. Em Chipre, o Governo deu ordens aos bancos, estes aos funcionários e os clientes ficaram sem o dinheiro. Sem qualquer norma jurídica que revogasse os termos de tais contratos. Sem sequer aprovação da medida pelo Parlamento cipriota.

E isto significa que, por ordem do Eurogrupo, sempre às ordens da “morsa adormecida”, na feliz expressão de Eduardo Prado Coelho, os cidadãos cipriotas foram objecto de abusos de confiança ou furtos em massa.

Se é que, pela Europa fora, ainda vigora aquela normazinha da Declaração Universal dos Direitos do Homem que lá nos ia permitindo ser um pouquinho proprietários das nossas poupanças, salários, reformas e empréstimos nos bancos depositados. Na sequência de tal norma universal é que as Constituições da Europa e os Códigos Penais de todos os países nos vieram dizer que é crime fazer o que se fez aos cidadãos cipriotas.

Mas Angela Merkel e seus “compagnons de route” seguem antes aquele princípio do secretário-geral do seu partido e que diz que a “Europa fala alemão”, desprezando o seu filósofo e escritor Thomas Mann.

Mas para onde nos leva?

O autor é procurador-geral adjunto

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