Dia Nacional da Visibilidade Trans: “Com o novo Parlamento, quem é contra a nossa existência vê as suas visões validadas”

É a primeira vez que se assinala este dia nacional, que já existia internacionalmente. E o balanço não é positivo: há “medo” de não conquistar mais direitos, e até de perder alguns já conquistados.

NFS Nuno Ferreira Santos - 28 Marco 2024  -  Daniela Bento presidente da ILGA
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Jade Aura RAFAEL DUQUE/ CURSO DE COMUNICAÇÃO E MEDIA, POLITÉCNICO DE LEIRIA
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Na primeira vez em que se celebra o Dia Nacional da Visibilidade Trans, a 31 de Março, o cenário pinta-se assim: a lei da autodeterminação de género nas escolas, que previa que os alunos pudessem escolher o nome e fosse garantida privacidade em casas de banho e balneários, foi vetada por Marcelo Rebelo de Sousa; o discurso transfóbico está a crescer de forma “alarmante” na Europa e a actual conjuntura política, aliada à entrada no Parlamento de 50 deputados do Chega, faz nascer “receios” em relação ao condicionamento de leis e à estagnação de políticas que protejam e dignifiquem a comunidade LGBTQI.

O “aumento do discurso de ódio”, normalizado e veiculado pelo partido de direita radical, que apenas mencionou uma vez a palavra “trans” no seu programa eleitoral — para defender que deve ser proibida a participação de pessoas trans em modalidades desportivas “categorizadas entre sexos biológicos” —, e que se diz empenhado em destruir a “ideologia de género”, termo usado para atacar estudos e descredibilizar questões de género, é já visível: “As pessoas estão, de facto, com medo”, enquadra Daniela Bento, presidente da Ilga (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo).

Não é só uma percepção. O relatório anual da Ilga Europa, publicado em Fevereiro último, deu conta de um aumento de 185% de conteúdo anti-LGBTI nas redes sociais entre 2019 e 2022, uma tendência comum na União Europeia, potenciada por discursos homofóbicos e transfóbicos de políticos.

A Ilga Portugal tem visto “um aumento de pedidos de ajuda e de acompanhamento”, não só relacionados com “a violência que pode acontecer na rua”, mas também com a omissão “da própria identidade dentro de casa”, depois de muitas pessoas trans “terem visto o seu pai ou mãe a votarem num partido de extrema-direita”, aponta Daniela Bento.

Jade Aura, de 22 anos, assistiu “chocada” ao dia das eleições: “Os direitos das pessoas trans são dos mais frágeis e esta conjuntura política só cria instabilidade”, lamenta. “Sinto que, com o novo Parlamento, os direitos e o acesso que temos às coisas de que precisamos para fazer a nossa vida com dignidade estão fragilizados. E a nossa posição social ainda mais. Porque as pessoas que são contra a nossa existência vêem as suas visões validadas e sentem que podem começar a expressá-las de forma mais vincada.”

O mesmo relatório dizia que um dos motivos para o aumento “alarmante” do discurso anti-LGBTQI+ se devia precisamente ao discurso transfóbico e homofóbico de políticos, que foi registado em 21 de 27 países da União Europeia. E há países onde se assiste a uma tendência de regressão nos direitos das pessoas trans: o Serviço Nacional de Saúde de Inglaterra vai deixar, a partir de 1 de Abril, de prescrever terapia hormonal a jovens trans, por exemplo; no Brasil, a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos.

Por cá, Jade não sente ódio nas redes sociais (“tenho uma comunidade muito moralizadora”), mas tem repensado alguns comportamentos: “Andar de transportes públicos ou sozinha à noite não eram ansiedades que eu tinha. E agora penso duas vezes antes de o fazer. A incerteza está a aumentar, e não é que eu sinta medo de prosseguir com a minha vida e ser visível enquanto mulher trans, mas acabo por pensar duas vezes”, afirma a estudante de Artes Plásticas, natural da Amadora e membro do colectivo Caldas em Marcha.

Acesso à saúde é uma das principais preocupações

O acesso à saúde é uma das preocupações destacadas por Daniela e Jade. Desde 2017, quase 400 pessoas fizeram cirurgias de reatribuição sexual no SNS.

Aquando da publicação destes dados, apurados pelo PÚBLICO, Daniela Bento referiu que as demoradas listas de espera e “a ideia de autodeterminação que garante que as pessoas possam mudar de nome e género sem precisar de cirurgia” poderiam ser a justificação para a descida do número de pacientes operados que se verificou em 2023.

Em Portugal, antes de uma cirurgia de reatribuição sexual, que só pode ser realizada depois dos 18 anos, os utentes passam por um longo processo e consultas, que incluem duas avaliações psiquiátricas independentes que atestem a disforia de género (quando alguém não se identifica com o género atribuído à nascença).

O paciente tem ainda de ser acompanhado em endocrinologia, para confirmar a inexistência de contra-indicações médicas para a cirurgia, e tomar terapêutica hormonal de afirmação de género durante pelo menos um ano.

A terapia hormonal pressupõe um relatório médico de disforia de género emitido por uma equipa multidisciplinar (que inclui pelo menos um médico ou um psicólogo). Se o utente tiver menos de 18 anos, poderá ser requerida autorização parental, além da declaração de consentimento informado.

Agora, “as pessoas estão com medo de que as leis sejam condicionadas por este movimento de extrema-direita e que, além das leis, o acesso à saúde seja barrado”, começa Daniela Bento. “Vemos retrocessos noutros países em diversas leis. Isto não é uma possibilidade remota, é uma possibilidade que pode estar mais próxima do que pensamos.”

Por isso, neste momento, acredita que, além da luta por novas conquistas, é necessária também a luta “pela manutenção do quadro legal que já existe e que pode estar em risco”.

Daniela teme também que os direitos das pessoas trans desçam para o fundo da lista de prioridades. Um exemplo: o projecto de lei da autodeterminação de género nas escolas vetado pelo Presidente da República e que, ao ter sido vetado quando o Parlamento já estava dissolvido, não transita para a nova legislatura. “Esta lei era extremamente importante para muitas pessoas. E agora, como é que vamos encaixar isso no quadro político outra vez?”

No programa eleitoral do PSD, a palavra "género" só é mencionada para falar de igualdade de género. Não são mencionadas propostas relacionadas com direitos LGBT.

Fim das práticas de conversão

Mas também há avanços a realçar. Em Dezembro último, foi aprovada a lei que criminaliza as “práticas de conversão” (destinadas a reprimir a identidade de género ou orientação sexual) de pessoas LGBT+, prevendo penas de prisão que podem chegar até aos cinco anos.

No Exército, as pessoas trans e não-binárias deixam de ser excluídas à partida e passam a ser sujeitas a uma junta médica na qual se avalia se têm condições físicas e psicológicas para desempenhar a função a que se candidatam.

E não é possível falar em visibilidade trans sem mencionar Um Caroço de Abacate, a curta de Ary Zara, que fala sobre ser trans, tolerância e felicidade e que chegou à lista dos 15 pré-nomeados ao Óscar de melhor curta-metragem, conquistando Elliot Page, que se tornou produtor executivo do filme português. Ou ainda Marina Machete, a primeira Miss Portugal trans, que ficou no top 20 do concurso Miss Universo.

O Dia Nacional da Visibilidade Trans, um dia simbólico, aprovado no Verão de 2023 com os votos a favor do PS, Iniciativa Liberal, PCP, BE, PAN e Livre, e com os votos contra do PSD e do Chega, é importante para “mostrar que a realidade das pessoas trans tem de ser ouvida”, mas é preciso (muito) mais. “Falta o reconhecimento das identidades não-binárias, o reconhecimento da identidade de pessoas migrantes, o acesso à saúde digno para pessoas trans e não-binárias e a formação e desconstrução de ideias preconcebidas em relação a pessoas LGBT, trans e não-binárias”, aponta Daniela Bento.

Para Jade, é urgente o fim da “vilanização” das pessoas trans. “O problema é sistémico, mas pode acabar se as pessoas forem mais empáticas e ouvirem os outros. A dignidade tem de nos ser atribuída. É um direito.”

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