Nós, os danados da terra, quatro meses depois

Gaza é o nosso espelho. As vítimas da fome estão de pé, o mundo não. Israel está a ser roído por dentro. Cravinho acertou o passo com Guterres.

Ouça este artigo
00:00
09:57

1. Há quatro meses que troco mensagens com Gaza. A última vez que partilhei algumas aqui foi no Natal. Como quase toda a população, o meu amigo W. foi deslocado para sul. Passou semanas num hospital a meio da Faixa, em Deir Al Balah, com a família da irmã, bombardeada. W. tem sequelas de ter sido torturado pelo Hamas, desloca-se com dificuldade. Vou partilhar o mais importante desde o Natal, deixando quase sempre de fora as expressões de afecto e cortesia que ele não abandona, nem no horror.

30 de Dezembro:

“Tenho muitas dores, não há analgésicos. Estou a tentar ir para o Egipto mas há milhares de casos médicos mais sérios. Preciso de transplante ósseo e fixação da clavícula. E de tratar o joelho.”

3 de Janeiro:

“Um bombardeamento a 30 metros do hospital. Gente em pânico a correr dos estilhaços. Nusseirat, Bureij e Maghazi ficaram debaixo de fogo e a maior parte das pessoas fugiu na nossa direcção. Milhares estão a dormir nas ruas. Hoje comi um pedaço de pão e um tomate. Consegui também 250ml de água. Estou a guardar 60ml para a noite. Sou sortudo. Muita gente não está a comer. Isso é claro quando centenas de olhos se fixam no que tenho nas mãos. Muitos de nós mendigam comida. A fome tornou as pessoas estranhas. Vi gente roubar, muitas lutas. Nenhuma privacidade. Zero higiene. O esgoto está por toda a parte. Milhares de membros amputados. Queimaduras. Cadeiras de roda e bengalas. O hospital está tão cheio, corredores, pátios. Centenas de feridos a dormir ao relento. Gaza já não é habitável. Gaza, a bela casa, tornou-se uma grande pilha de entulho. As imagens lembram-me Nagasáqui e Hiroxima. Mais de cem mil deficientes e cerca de 40 mil vítimas. Recebi uma foto da minha casa e do meu bairro. É como um terramoto. Estamos em choque. Desculpa, não devia preocupar-te. Acredita, estamos fortes. Mais do que alguma vez imaginámos.”

6 de Janeiro:

“A minha casa [foto de uma pilha de entulho). Não sobrou nada. As pessoas estão a ir para Rafah. Ainda não consegui um transporte.”

10 de Janeiro:

“Deir Al Balah e o hospital ficaram tão perigosos. Havia tiroteio e bombardeamento. Vi várias pessoas serem mortas. Vim para Rafah há 4 dias. Estamos a metros do Egipto, perto do mar. Tão atulhado, pobre, extremamente frio. Não há palavras para o quanto a vida é miserável aqui. É a sexta vez que sou deslocado nos últimos 90 e tal dias. A água está contaminada, e há pouca. Conseguimos enlatados e temos farinha para fazer pão. Duche é outro problema. Só urino à noite quando tenho a certeza de que a multidão não pode ver. Tão inumano. Continuo a rezar para sair.”

As filhas de W. estudam fora de Gaza. Uma está no Egipto com a mãe. Elas esperam receber W., e cuidar dele. Uma exposição do caso de W. é enviada às autoridades egípcias, com documentos e radiografias. Resposta dos egípcios: que ele vá a um hospital e registe o seu nome na lista dos que querem sair.

21 de Janeiro:

“Milhares já estão registados, incluindo casos muito sérios. Fiz tudo o que podia. Estou numa tenda precária. A situação piora a cada dia. Nem acredito que ainda me consigo mexer. Tanta fome. Tão sujo. Muitas dores e frio.”

26 de Janeiro:

“Manda-me o que souberes sobre a decisão do Tribunal Internacional de Justiça.”

29 de Janeiro:

“Linguagem forte mas decisão pálida. Israel continuará. Sofreremos mais. Literalmente morrendo às centenas por dia.”

31 de Janeiro:

“Ainda em pé. Mantenho esperança de sair daqui em breve ou ficar forte até este inferno acabar.”

2 de Fevereiro:

“Estou num estado miserável minha amiga. Muito a dizer mas as palavras não bastam. Requer mais que a minha capacidade. Inshallah conseguirei ultrapassar isto. Tenho vergonha de partilhar, as pessoas que conheço não são mais as mesmas. O meu povo hospitaleiro e decente tornou-se mendigo ou ladrão. Fomos privados de tudo, até da nossa humanidade.”

Este foi o último dia em que tive notícias de W. O meu outro amigo em Gaza, R., jornalista profissional, mandou-me uma mensagem no dia seguinte, escrevendo “pedintes” entre aspas, como se nem suportasse outra forma.

3 de Fevereiro:

“Estamos exaustos. Tornámo-nos ‘pedintes’, correndo atrás de mantimentos, cobertores e água. Embaraça-me esperar numa fila por comida, bater à porta das ONG. Durmo num cobertor, muito frio. E para tudo há uma longa fila, o que significa o dia todo, e impossibilidade de trabalhar. Estamos a ser desumanizados. Preciso de medicação para hipertiroidismo. Missão impossível.”

2. R. e W. não se conhecem. Ambos são orgulhosos, inteligentes, cultivados. Falam excelente inglês, viram o mundo quando era possível, antes de o gueto se fechar, porque têm mais de 50 anos. E uma noção clara da herança histórica. Nenhum deles é simpatizante do Hamas, pelo contrário. Quando os conheci eram homens saudáveis, elegantes, com casas cuidadas, acolhedoras, crianças a correr, avós e retratos nas paredes. Como incontáveis pessoas que conheci em Gaza desde 2002. Incontáveis casas cuidadas, apesar de estarmos num campo de refugiados, onde nos sentávamos em chãos limpos a partilhar comida maravilhosa. Jamais vi uma pessoa pedir na rua em Gaza. Ninguém abandonado.

Foto
Em Gaza, luta-se por comida todos os dias REUTERS/Ibraheem Abu Mustafa

Quando há pouco escrevi o nome Bureij (um dos lugares agora bombardeados), lembrei-me de lá ter ido com W. visitar uma anciã sobrevivente da Nakba que falava do marido como de um namorado, refugiada numa casa que nunca desistiu de ser bonita. Ela dedicara décadas a visitar palestinianos nas cadeias de Israel, e para poder fazer isso adoptou 40.

A Palestina que conheci nunca desistiu de ser bonita, começando por Gaza. A vergonha de R. e W., ao verem o seu povo transformado em pedintes, esfomeados, essas imagens com que somos bombardeados desde 7 de Outubro não são a vergonha da Palestina. São a vergonha de Israel.

E de quem tem sido cúmplice. As vítimas da fome estão de pé, o mundo não. Gaza é o nosso espelho. O risco de genocídio que o tribunal de Haia considerou plausível não é só a eliminação de um conjunto de pessoas. É a destruição de um povo cercado, no seu território, com a sua cultura. Partirem-lhe a coluna, tirarem os órgãos, matarem os filhos, queimarem a mente. Em Gaza, de forma radical, e na Cisjordânia, devagar. Isto passa-se há quatro meses diante dos nossos olhos de uma forma que não se parece com outra guerra. Os danados da terra somos todos nós, que estamos vivos agora, enquanto isto acontece.

E Israel está a ser roído por dentro. O tribunal de Haia decreta que façam tudo para prevenir o genocídio e na manhã seguinte os ministros-colonos dançam sobre os cadáveres de Gaza, juram plantar lá colonatos, enxotar os palestinianos. E Biden pune “quatro colonos extremistas”. O nível a que chegou a ficção. Singularizá-los é uma ficção. Eles são, hoje, o fruto e a faca do sionismo, a máscara mais feia do estado de Israel, com a colaboração do mundo rico, à custa da culpa colectiva pós-Holocausto, a bem de muitos negócios, incluindo os regimes árabes.

Mas a pergunta mais difícil vai além da culpa e dos negócios: porque é que as vidas palestinianas não contam como as israelitas, as americanas, as europeias, as australianas? Sabemos da culpa, sabemos dos negócios. Mas talvez não soubéssemos da dimensão do racismo incrustado em cada um. E tomem racismo aqui num sentido amplo, que abrange islamofobia. Tal como o anti-semitismo é racismo.

Não é por acaso que o processo em Haia chegou pela mão da África do Sul.

3. Masha Gessen, jornalista e intelectual judia americana respondeu recentemente às acusações de ser uma self-hating jew explicando que critica Israel porque é por aí que deve começar. Sendo judia, é o comportamento de Israel que a deve preocupar. É o que têm feito os judeus que corajosamente pedem o cessar-fogo. Precisamos primeiro do que a coragem pede ao que nos é mais próximo. Claro que do Irão à Arábia Saudita, do Líbano ao Egipto, é fácil perder a conta aos líderes sinistros. Mas se somos europeus, se estamos em Portugal, comecemos por nós.

Uma conjuntura irrepetível faz com que esta guerra sem precedentes aconteça quando o secretário-geral da ONU é um português. A firmeza de Guterres surpreendeu muita gente. Biden tornou-se cúmplice da matança e agora prova do veneno de Ben-Gvir e Smotrich, a ala terrorista do governo de Israel. A UE envergonhou-nos por meses, e vários dos seus membros voltaram a envergonhar-nos ao suspender o dinheiro da UNRWA. Critiquei há meses Marcelo e o Governo português. Nomeadamente, João Cravinho: e por isso quero terminar a dizer que nos honra a todos ver Portugal não só dar um milhão extra à UNRWA, como usar palavras firmes quanto ao isolamento internacional de Israel. Cravinho acertou o passo com Guterres, dizendo ainda palavras que o secretário-geral da ONU não poderia dizer. Precisávamos desse acto, desse gesto, dessas palavras.

Sugerir correcção
Ler 55 comentários