Os acontecimentos que marcam o mundo não andam ao ritmo dos calendários. Mas, com o fim do ano a chegar, emerge o ritual jornalístico das listas e retrospectivas. Aqui no PÚBLICO já temos várias (as melhores séries, a melhor música, as fotografias, só para dar alguns exemplos) – e mais serão publicadas em breve. 

A próxima newsletter 4.0 só chegará ao seu email em 2024. Por isso, aproveitamos este último envio do ano para uma breve passagem por seis temas que marcaram 2023. É uma lista com pelo menos dois assuntos tão óbvios como incontornáveis. 

Em primeiro lugar, Elon Musk, personagem maior do mundo da tecnologia, espécie de génio empreendedor transformado em vilão e cujo poder toca hoje em pontos que há não muito tempo acharíamos inalcançáveis para um empresário.

Em segundo, a inteligência artificial, a tecnologia que atiçou a imaginação pública este ano, graças sobretudo ao ChatGPT e à sua desconfortável capacidade para mimetizar o discurso humano. 

Há dois temas talvez menos evidentes, mas com potencial para influenciar a economia e a geopolítica globais: a guerra dos chips e a erosão do estatuto da China enquanto "fábrica do mundo".

Por fim, um assunto que reverberou com estrondo e um outro que foi muito mais silencioso, mas é digno de nota.

Este foi o ano em que a roda livre e o espírito libertário dos cripto-entusiastas esbarrou de frente com a regulação e a lei. As consequências não são fáceis de prever, mas a falência da FTX e o afastamento de Changpeng Zhao da liderança da Binance foram dois terramotos.

E temos Mark Zuckerberg. Embora longe de ser um protagonista, aproveitou a pouca atenção que lhe tem sido dada para cimentar o papel e o negócio das redes sociais da Meta. Depois da crise reputacional dos anos recentes, a empresa não é apenas uma máquina de fazer dinheiro: as suas plataformas são um pilar da comunicação quotidiana em boa parte do mundo.

Vamos então a isto.

Musk, o caótico
É difícil escolher por onde começar com a mais caótica e, de certa forma, fascinante personagem dos últimos anos. Comecemos pelo princípio, tal como nos narra a minuciosa biografia publicada em Setembro.

O livro de Walter Isaacson chegou aos escaparates com pompa e timing impressionantes. Dá-nos a história de uma infância e juventude violentas e conturbadas. O empresário é descrito como perseguido por traumas e "demónios" que o atormentam desde os primeiros anos; como obsessivo e genial; e como alguém cuja ambição e visão o colocam acima das regras da decência por que se regem a generalidade das pessoas. É, apesar de todos os episódios negros, uma narrativa demasiado simpática para com o biografado.

Musk comprou o Twitter no final do ano passado (em parte, com dinheiro da ditadura saudita) e este ano continuámos a assistir à erosão de uma das mais importantes redes sociais do planeta. Despediu pessoas, alterou funcionalidades, insultou anunciantes. Faz sondagens entre os próprios utilizadores sobre as decisões que deve tomar, numa espécie de experiência de micro-democracia directa que seria interessante se não tivesse consequências graves. 

As contas da empresa já não são públicas, mas é certo que perdeu muitos anunciantes e receitas. Continua, contudo, a ser uma plataforma de comunicação relevante, incluindo entre as elites políticas e mediáticas.

Diz muito sobre Musk que o facto de controlar uma plataforma como o Twitter não seja a maior demonstração do poder que tem. A rede de satélites Starlink (milhares de satélites que Musk conseguiu pôr no espaço graças aos foguetões reutilizáveis da Space X) dá-lhe um poder único. Num episódio que se passou em 2022, mas só veio a público este ano, uma decisão de Musk frustrou as ambições ucranianas de fazer um ataque à Crimeia. 

Chegou ao final de 2023 a aprovar comentários anti-semitas no Twitter e, mesmo assim, a fazer uma viagem a Israel em que apareceu ao lado de Benjamin Netanyahu​ com aura de figura de Estado. 

Goste-se ou não, não há ninguém como ele. 

Corrida a galope
As ferramentas de inteligência artificial generativa como o ChatGPT ou o Dall-e ainda não mudaram o mundo. Mas já mudaram a forma como o mundo se vê no futuro.

O entusiasmo com máquinas capazes de gerar texto indistinguível do humano ou de criar imagens com aparência de criatividade foi uma das tónicas do ano.

Há muito que a humanidade já se tinha conformado com o facto de ter sido ultrapassada por computadores em algumas tarefas. Mas a inteligência artificial generativa tocou em características que muitos entendem ser traços definidores da humanidade. Não é exactamente uma ameaça existencial, mas é alimento para angústias existenciais.

E, pela primeira vez, a tecnologia ameaça de forma palpável um grande número de empregos de colarinho branco.

O ChatGPT – cuja OpenAI protagonizou uma novela empresarial para animar o final de ano – lançou uma corrida a este tipo de tecnologia. Entre as empresas, a Microsoft parece particularmente bem posicionada. Em termos globais, esta é uma corrida a dois, entre os EUA e a China. À União Europeia cabe, como já é habitual, o papel de regulador.

O ano termina com os legisladores europeus a anunciarem novas leis importantes para regular o sector. Do acordo à ratificação final deverá ser um passo breve; mas daqui à transposição para as leis nacionais podem ser dois anos. É muito tempo para uma tecnologia que segue a galope.

A quase guerra dos chips
A cadeia de produção dos chips é muito, muito pequena. A dependência global desta cadeia é muito, muito grande.

A holandesa ASML é a única empresa a produzir alguma da maquinaria de ponta necessária. A taiwanesa TSMC tem uma grande fatia da produção global, especialmente se feitas as contas aos chips mais sofisticados (há a teoria de que a produção é tão importante que fábricas da TSMC estão colocadas em praias de Taiwan para dissuadir um ataque chinês nesses locais). Apenas três empresas são responsáveis pelo software necessário: duas americanas e uma alemã. 

O Japão e a Coreia do Sul são países produtores. A China é produtora (e importante fornecedora de matéria-prima), mas está longe de ser auto-suficiente (razão pela qual os EUA estão a constranger a exportação de chips para o mercado chinês). Os EUA produzem uma pequena percentagem do que precisam, mas a Administração Biden apostou em políticas públicas para tentar aumentar o fabrico doméstico.

A época festiva pode ser uma boa altura para ler o livro A Guerra dos Chips, que esmiúça o sector. Não há ainda uma guerra plena, talvez porque os constrangimentos de uma cadeia de produção tão pequena e interligada a torne quase impossível; mas as hostilidades estão abertas.

Zuckerberg, o gestor
Mark Zuckerberg foi motivo de chacota na Internet com a sua visão do metaverso e da realidade virtual, que se traduziu em gráficos a fazer lembrar os jogos de computador de há 20 anos, em avatares sem pernas e, no geral, em tecnologia inútil. 

Não tem sido um investimento pequeno. Nos primeiros nove meses deste ano, o esforço de realidade virtual custou 11,5 mil milhões de dólares à Meta (mais do que em 2022). E significou 825 milhões de receita (menos do que em 2022). 

Zuckerberg também lançou a Threads, uma rede social criada para aproveitar o descontentamento face ao rumo do Twitter. Mas as redes sociais que vingam não são aquelas que fazem o mesmo que as rivais; são as que criam novos hábitos, linguagens e fenómenos culturais. A Threads estava destinada ao fracasso e tudo indica que será esse o desfecho.

Ainda assim, o negócio e as acções da Meta vão de vento em popa. Facturou 93 mil milhões de dólares entre Janeiro e Setembro, uma subida de 13%. A cotação disparou 178% desde o início do ano.

O WhatsApp e o Instagram deixaram de ser apenas redes sociais, para se estarem a transformar em plataformas de comunicação entre empresas e clientes (os anúncios do Instagram que abrem uma conversa com o anunciante, por exemplo). E os planos ambiciosos para integrar inteligência artificial serão uma forma de levar este conceito mais longe, incluindo em mercados gigantes, como a Índia.

Mais longe dos holofotes do que o habitual, Mark Zuckerberg mostrou ao longo do ano qualidades de gestor – e de lutador de artes marciais. 

O que sobe também desce. E sobe
A bitcoin valorizou 150% face ao dólar desde o início do ano (e 145% face ao euro). É, para qualquer que seja o activo, uma subida impressionante (embora seja menos do que as acções da Meta ou da Nvidia, por exemplo). E coloca uma questão sem resposta fácil.

É possível teorizar que o entusiasmo dos investidores em criptomoedas segue o entusiasmo a que se assiste, por exemplo, nos mercados de acções, numa altura em que parecem ter chegado ao fim os aumentos das taxas dos bancos centrais. 

Também é possível teorizar que os embates das empresas de cripto com os reguladores americanos, em vez de enfraquecer, ajudaram a "institucionalizar" o sector e a dar confiança a investidores. 

Mas o certo é que ninguém sabe ao certo o que se passa (no que toca às criptomoedas, é o tipo de frase que costuma suscitar emails de pessoas apostadas em mostrar-me que sabem exactamente o que se passa). 

Em todo o caso, não é possível dizer que a bitcoin e demais criptomoedas tiveram um crescimento de adopção, ou que servem hoje para mais do que serviam no início do ano. Comprar o que quer que seja com bitcoins continua a ser uma bizarria rara. E as criptomoedas continuam a ser uma solução à procura de um problema.

Este ano, assistimos ao desenlear do novelo da FTX, outrora uma importante plataforma de criptomoedas. A queda começou em Novembro do ano passado. Chegados a Novembro deste ano (paremos um segundo para contemplar a rapidez da justiça num intrincado caso de fraude financeira com uma tecnologia difícil de compreender), o fundador e CEO da empresa, Sam Bankman-Fried, foi considerado culpado de fraude e lavagem de dinheiro, entre outros crimes. A sentença será conhecida em Março e Bankman-Fried, de 31 anos, poderá passar décadas na prisão.

Também a Binance, a maior plataforma de criptomoedas do mundo, foi condenada nos EUA a uma enorme multa de 4,3 mil milhões de dólares por falhas em cumprir regras dos mercados financeiros. Como parte do acordo com o regulador, o CEO Changpeng Zhao, uma figura icónica no sector, teve de se demitir. Declarou-se culpado de não ter evitado que a Binance fosse usada para lavagem de dinheiro e pagou uma multa de 50 milhões de dólares.

Independentemente do que aí vier, este foi o ano do fim do sonho libertário do enigmático Satoshi Nakamoto.

Da Índia para o mundo?
Arranco o derradeiro (e breve) tema com uma nota pessoal: o site Rest of World foi uma das minhas descobertas do ano. Bom jornalismo atrás de bom jornalismo, conta o impacto da tecnologia no mundo não ocidental. 

Um bom exemplo, dado há duas semanas nesta newsletter, é a reportagem que mostra como a fabricante Foxconn, que produz dispositivos da Apple, está a exportar para a Índia os métodos e a cultura de trabalho que emprega na China (bem como os próprios trabalhadores, a maquinaria e o software).

Na China, estão a surgir dificuldades para encontrar trabalhadores fabris que alimentem o modelo de manufactura barata que fez o país crescer. A Índia é um dos países que está a tentar posicionar-se como um substituto parcial. Está a produzir mais iPhones para a Apple, e conseguiu recentemente convencer a Tesla a abrir lá uma fábrica. O Vietname, onde a mão-de-obra é particularmente barata, está, à sua escala, a tentar fazer o mesmo.

Visto daqui do ocidente, onde a tecnologia é sobretudo consumida, pode não fazer muita diferença. Mas o potencial de mudança no outro lado do mundo é enorme.

É altura de aguardar por 2024. Até para o ano.