O que fazer das noivas do Daesh?

Países europeus querem evitar o regresso dos seus cidadãos que estiveram na Síria e Iraque a viver no “califado”. Mas a retirada de nacionalidade não é simples e provoca vários problemas.

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Uma foto de Shamima Begum, em 2015 Laura Lean/REUTERS

O caso de Shamima Begum, a britânica “noiva do Daesh” a quem o Reino Unido decretou a retirada da cidadania britânica, pode estabelecer uma tendência: outros países europeus que enfrentam o regresso em breve de cidadãos que foram combater pelo Daesh ou apoiar o grupo terrorista islâmico poderão fazer tentativas semelhantes.

Mas enfrentam condicionalismos da sua própria legislação e leis internacionais.

Josh Walmsley, investigador que foi um dos co-autores de um estudo para o Parlamento Europeu sobre o regresso dos combatentes europeus à União Europeia, diz que nas conversas com responsáveis dos Estados-membros, estes garantiam que nunca retirariam a cidadania numa situação em que os visados ficassem apátridas (o que é proibido por uma convenção de 1961), mas sublinha que “geralmente as respostas eram evasivas”. “Era como se estivessem à espera que outro Estado decidisse primeiro”, diz, numa conversa telefónica com o PÚBLICO.

O caso de Shamima Begum “mudou tudo”. Ela saiu do Reino Unido com duas amigas em 2015, tinha então 15 anos. Agora, com 19, foi encontrada por um jornalista num campo de refugiados na Síria, grávida em fim de termo. Disse algumas coisas, entre as quais que gostaria de regressar ao Reino Unido porque depois de ter visto dois filhos morrer não queria que isso acontecesse com o que estava prestes a nascer — já nasceu.

Perante o pedido, o ministro britânico do Interior, Sajid Javid, anunciou que Londres ia retirar a cidadania a Begum. A família já disse que irá recorrer.

“A temperatura à volta deste assunto subiu”, diz Walmsley, citando o caso de Shamima Begum. “Outros países vão ver muito atentamente a reacção britânica, e para além disso é muito difícil dizer”, nota.

EUA dão exemplo

Fora da Europa, os Estados Unidos parecem ter feito isso mesmo: o secretário de Estado Mike Pompeo disse que Hoda Muthana, jovem nascida nos EUA e que saiu do país para se juntar ao Daesh e que disse que gostaria de voltar, “não é cidadã americana”. (Muthana é filha de um diplomata iemenita e os EUA consideram que filhos de diplomatas não são cidadãos dos EUA, mas em 2004 ela conseguiu passaporte americano).

O caso de Shamima Begum ameaça arrastar-se e trazer uma série de complicações, dizem os analistas. O Reino Unido pode decidir retirar a nacionalidade por alguém “agir contra o interesse” do país, “o que pode ser interpretado de vários modos”, diz Walmsley. E em 2017 parece ter havido mais de cem pessoas a quem a nacionalidade foi retirada, “o que é um número bastante alto”.

Noutros países teria, no entanto, de haver uma condenação prévia, como é o caso da Dinamarca, Bélgica, e França.

Mas mesmo havendo a possibilidade de retirar a nacionalidade sem condenação, isto só pode acontecer caso haja uma segunda nacionalidade atribuída ou que possa vir a ser dada para evitar o estatuto de apátrida. Ou seja, em caso de pessoas com dupla nacionalidade ou que tenham garantida uma segunda nacionalidade.

No caso de Shamima Begum esta condição parece difícil de provar: apesar de a família ser do Bangladesh, ela não visitou nunca o país, não tem dupla nacionalidade e as autoridades bangladeshis já disseram que não a irão deixar entrar.

Um caso mais complicado ainda pode ser o do seu filho de dias: a família pôs a correr um processo para o trazer para o Reino Unido.

“Vai ser uma confusão”, resume John Dalhiusen, do centro de estudos ESI (European Stability Initiative) e antigo director para a Europa da Amnistia Internacional. “Será uma confusão legal durante algum tempo e o ganho político no curto prazo irá perder-se enquanto esta história se arrasta durante anos nos tribunais e ela está num campo de refugiados na Síria.”

“Pulsão populista”

Numa conversa telefónica com o PÚBLICO, Dalhiusen sublinha a complexidade do caso e nota que “o primeiro impulso do ministro do Interior britânico é político”: ele “responde a uma pulsão populista”, considera. O público pensa: “Quem é esta pessoa, que cresceu neste país mas saiu para apoiar pessoas que estão empenhadas em fazer horrores indiscritíveis a este país, que expressa muito pouco arrependimento pelo que fez, mas quer voltar” — esta é uma reacção “muito humana” e “o ministro está a responder a isso, pensando que isso o fará popular”.

Mas, para Dalhiusen, esta resposta “não é certa nem legal”. “Primeiro, não é claro que seja garantido que se faça mais justiça se ela não for trazida e julgada no Reino Unido”, já que “a maior parte dos países tem legislação para apoio ao terrorismo”.

Segundo, “parece que o Reino Unido está a lavar as suas mãos: o país devia ser responsável pelos seus cidadãos”. Terceiro, a melhor estratégia de desradicalização será “excluí-la e bani-la” ou “trazê-la de volta, castigá-la e reintegrá-la”?

Finalmente, ao aplicar uma medida apenas a cidadãos com dupla nacionalidade, o país está de facto a dar um castigo diferente pelo mesmo crime a cidadãos apenas britânicos e aos que têm dupla nacionalidade.

Josh Walmsley aprofundou as duas últimas questões, de estratégia de contraterrorismo e de medidas diferentes aplicadas a cidadãos em circunstâncias diferentes. Começa por sublinhar o facto de Shamima Begum ter saído quando era menor, e, “segundo a lei internacional, os menores que são recrutados são sempre, primeiro que tudo, vítimas”, sublinhou.

“Isso quer dizer que não deva ser acusada pelos seus crimes ao chegar? Claro que não! Mas quer dizer que deve receber apoio psicológico para o trauma”, diz.

Este apoio “não é só uma questão de compaixão — é uma questão pragmática, porque se quisermos evitar que estas pessoas representem uma ameaça futura, tratar o trauma é essencial”, sublinha o especialista. Há uma ideia feita que esta é uma abordagem “fraca”, mas não há uma oposição entre medidas duas e fracas.

O investigador junta outra face do assunto: “o ângulo racial”, que é motivo para preocupação. “Porque o que está a ser aplicado a Shamima Begum não seria aplicado a uma pessoa branca, com uma única nacionalidade, que se tivesse convertido ao islão — essa pessoa iria receber o mesmo tratamento que um criminoso comum”. Já no caso de “britânicos que sejam filhos de imigrantes podem tornar-se, como uma vez disse Theresa May noutro contexto, ‘cidadãos de lado nenhum’”.

Castigos diferenciados

Dalhiusen também sublinha o “simbolismo” da culpabilidade ser vista de forma diferente conforme se trate de uma pessoa simplesmente britânica e outra com dupla nacionalidade: “Uma pode ser castigada de um modo e outra de outro”, o que traz a mensagem de que a segunda não é realmente “uma de nós”. “É perigoso e pouco sensato.”

Mas, apesar disso, é uma mensagem apelativa. Como diz Josh Walmsley, chega a ser “compreensível”. “A natureza da violência, os ataques, provocam respostas emocionais muito fortes simplesmente por causa da sua natureza terrível”. E já desde o atentado em Nova Iorque de 2001, “nota-se que a resposta emocional tem dominado, e muitas vezes à custa de uma análise que tenha por base provas”.

Dalhuisen junta que “politicamente é mais fácil expressar posições no abstracto”. Mas “quando se transforma numa questão concreta, com caras, histórias e quando as pessoas não manifestam assim tantos remorsos, é muito difícil, porque há uma rejeição pública muito forte”.

Quando isso começar a acontecer noutros países europeus “é que será preciso uma visão política que não seja apenas de curto prazo”, diz Dalhuisen.

“A maior parte dos países não querem estas pessoas de volta e vão fazer todo o tipo de acrobacias para não as receber”, sublinha Walmsley. Mas os países tem sido até agora “conservadores” nas tentativas de retirar nacionalidade, diz Dalhiusen. Quando tentaram, os tribunais têm sido “estritos” na aplicação da lei.

Para Dalhiusen, o mais provável é que o pedido de retirada de nacionalidade de Shamima Begum falhe. E aqui está, finalmente, o problema maior: “Chegou-se a uma situação em que se criou a sensação de que há algo que se devia fazer e que não se pode por causa da lei — e a confiança das pessoas no sistema legal e no sistema político começa a diminuir”, diz.

“É muito pouco sensato arriscar [esta desconfiança] com uma reacção a um caso em que a lei não está necessariamente errada”, conclui Dalhiusen.

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