O Ruanda é o hotel onde ele quer voltar a viver

Quando olhamos para Paul Rusesabagina, vemos mais depressa o dono de uma empresa de transportes do que o homem que salvou 1268 ruandeses de serem cortados aos bocados em 1994. Quando falamos com ele, pára tudo: ele continua a querer salvar o Ruanda

a Ele não é o gerente de hotel que salva 1268 ruandeses de serem cortados aos bocados pela milícia Interahamwe no filme Hotel Ruanda. Ele é o gerente de hotel que salva 1268 ruandeses de serem cortados aos bocados pela milícia Interahamwe na vida real. É estranho, porque o conhecemos da ficção - e a ficção é um sítio onde ele fala inglês, é igualzinho a um actor americano (Don Cheadle) e se senta com a mulher a beber vinho no terraço do hotel. A realidade de Paul Rusesabagina é um sítio onde ele, de facto, fala inglês (é a língua que ele tem de falar para que o mundo não se esqueça do Ruanda), mas não a toda hora e sobretudo não com a família, onde ele se encontra com Don Cheadle em visita oficial ao Darfur (ficaram amigos depois do filme) e onde ele não tem tempo para se sentar com a mulher a beber vinho no terraço do hotel (e muito menos a debater se devia ou não fugir do Ruanda sem olhar para trás, quando o que está para trás são 1268 pessoas). No resto, a vida real é como na ficção: ele estava lá, e fez o que pôde. Foi isso que veio dizer no sábado - mais uma vez - a Santa Maria da Feira, como orador convidado do simpósio Identidade e Diversidade, organizado pelo Festival Sete Sóis, Sete Luas.
Imaginamos o que podia ser um Hotel Ruanda 2: Paul Rusesabagina nos subúrbios de Bruxelas, a gerir de perto uma empresa de transportes de carga e de longe uma fundação que quer salvar o Ruanda. Isso não está no filme, mas foi o que lhe aconteceu a seguir ao the end. Ainda teve tempo para viajar de carro até ao Sul do país e perceber que o Ruanda, e sobretudo o Ruanda de etnia tutsi, era um cadáver de beira de estrada - para perceber que ainda tinha mulher (ele é hutu de origem mista, Tatiana é tutsi) e filhos, mas já não tinha sogros, cunhados e sobrinhos.
Não fugiu para o estrangeiro quando saiu do Hotel des Mille Collines (continua a funcionar: estivemos no site e nem uma referência ao facto de ter sido a arca do Noé no Ruanda genocida de 1994), fugiu para o estrangeiro em Setembro de 1996, um dia depois de não ter morrido. Estava em casa quando a empregada viu um sargento do Ministério da Inteligência Militar a tirar uma pistola do bolso. "A minha casa fica perto de um quartel. Tentaram convencer-me de que era uma pistola de brincar. Eu sei muito bem distinguir uma arma de fogo de uma pistola de brincar. No dia seguinte, exilei-me", explicou ao P2 no intervalo do simpósio.
Mais ideias para a sequela de Hotel Ruanda: Paul Rusesabagina a querer voltar ao Ruanda. Só começa a acontecer agora, que estamos em 2007 e já passaram 13 anos: o nosso protagonista continua a ter uma empresa de transportes nos arredores de Bruxelas, mas também tem uma fundação, a Hotel Rwanda Rusesabagina Foundation, sediada em Chicago, que ajuda os órfãos (pelo menos 85 mil) e as vítimas de violação do genocídio (70 por cento das quais estão contaminadas com o vírus do HIV).
"Acho que brevemente poderei voltar ao Ruanda. A minha fundação começou agora a criar a Comissão Verdade, Justiça e Reconciliação para finalmente sentar ruandeses, hutus e tutsis não-radicais, à mesma mesa - e falar cara a cara como estamos aqui os dois a falar agora. Acho que os ruandeses estão finalmente fartos de se matar. Os dirigentes não, porque dividir é uma boa maneira de reinar, mas os ruandeses comuns acham que já chega", diz. É altura para começar a pensar no assunto, mas não é altura para começar a deixar de viver na Bélgica: "As ONG não falam de outra coisa a não ser de activistas dos direitos humanos e de jornalistas independentes assassinados. Agora que o Ruanda supostamente aboliu a pena de morte, as pessoas não chegam a ser presas: são massacradas e assassinadas logo ali".
"Eu não decidi nada"
O nosso filme acaba aqui. Não sabemos o que vai acontecer depois - a ele, em particular, e ao Ruanda, em geral. Mas sabemos mais algumas coisas sobre o que está a acontecer agora - e continuamos a querer saber coisas sobre o que aconteceu em 1994. Coisas que não vêm no filme, como: o que é que se passou na cabeça deste hutu bem relacionado com o regime e com os interesses europeus no Ruanda para fazer o que fez? A resposta é que não se passou nada: "Eu nunca decidi fazer o que fiz. Estava a jantar com o meu cunhado e a mulher para comemorar o novo emprego dela numa empresa holandesa de aluguer de automóveis quando o avião presidencial foi abatido, a 6 de Abril de 1994 [a bordo seguiam o Presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, e o Presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos de etnia hutu]. Vi-os pela última vez no parque de estacionamento - foram massacrados até à morte. A carnificina começou aí, e eu não decidi nada. Um por um, os vizinhos foram chegando a minha casa e, três dias depois, quando tive oportunidade de me refugiar no hotel, a minha família já era de 32 pessoas", veio dizer ao simpósio.
Chegou a ser de 1268 pessoas. Durante esses meses, Paul Rusesabagina não fez mais do que a obrigação dele - é realmente isto que ele pensa. Fez telefonemas para a Sabena (proprietária do Hotel des Mille Collines), para a Cruz Vermelha, para a polícia, para o Exército, para as embaixadas, para os Ministérios dos Negócios Estrangeiros da França e da Bélgica, para as Nações Unidas. Resolveu problemas ("Passámos 76 dias a beber água da piscina, racionada, e sem electricidade"). E "negociou com o mal". É a lição da vida dele: quando é preciso negociar com o mal, negoceia-se. Achou que era o que toda a gente estava a fazer para salvar vidas, até ao dia em que atravessou o Ruanda de carro e percebeu que tinha havido poucas pessoas com a mesma "presença de espírito".
O Darfur
Os ruandeses não tiveram presença de espírito e a comunidade internacional também não - e isso continua a ser verdade agora, nesse Hotel Ruanda 2 que é o Darfur: "Os EUA já reconheceram que o que está a acontecer no Darfur é um genocídio. A palavra foi muito bem empregue, mas como não aconteceu nada a seguir essa palavra é uma mentira. Na minha cabeça, as palavras só servem para alguma coisa se forem acompanhadas por acções. Morrem 3000 pessoas por mês no Darfur, e as que não morrem não têm comida, água e abrigo. É uma verdadeira catástrofe humanitária".
Paul Rusesabagina tem vergonha do Darfur como africano. Mas tem sobretudo vergonha do Darfur como cidadão do mundo: "Estive lá há dois anos com o Don Cheadle e foi humilhante para mim ver tanta gente completamente abandonada pela comunidade internacional. Em 15 minutos, mais de 2000 crianças juntaram-se à nossa frente com um painel que dizia: "Sejam bem-vindos, mas nós precisamos de educação". Não é uma vergonha para o mundo?".
O mundo está a falhar em África, diz ele - e tem moral para isso. "A comunidade internacional abandonou-nos - abandonou-nos completamente". Fez o que fez no Ruanda (ele não percebe "como é que Kofi Annan consegue dormir sem pesadelos e comer alegremente as suas refeições") e está a fazer o que está a fazer no Darfur: "O Ruanda acabou e toda a gente está a fazer o luto por ele muito confortavelmente sentada em sua casa. Não devíamos esperar que o Darfur acabe para começar a lamentar a falta de acção", escreveu Paul Rusesabagina em Abril de 2006, num artigo de opinião publicado no Wall Street Journal.
É aqui que nós discordamos de Paul Rusesabagina: se o filme que ele ajudou a produzir em Hollywood tivesse, de facto, cumprido a sua missão, não estaríamos aqui a falar de uma sequela.

Sugerir correcção