O regresso dos intelectuais

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O sotaque peculiar e a postura pública nervosa, cheia de tiques, de Slavoj Zizek transforma-ram-no numa figura globalmente reconhecível

A figura do intelectual estava na gaveta, mas nos últimos anos, principalmente desde que a crise irrompeu, parece ter renascido. A apoteose desse "comeback" é o esloveno Slavoj Zizek, superstar à escala global, do qual acaba de ser lançado em Portugal o livro "Viver no Fim dos Tempos".

Quando se quer demonstrar raiva por alguém pode-se mandá-lo simplesmente à merda ou então, se tivermos aspirações intelectuais não reveladas, chamar-lhe pseudo-intelectual.

Durante as últimas duas décadas, em Portugal, e no Ocidente em geral, os intelectuais foram associados apenas ao pensar e não ao fazer. A obsessão do agir, da velocidade e da eficiência apareceu e exibiu-se como antítese da reflexão, do entendimento, das ideias. E os intelectuais foram denegridos. Os burocratas agradeceram. E fizeram.

Fizeram algumas coisas com sentido. Mas também fizeram muita merda, lá está. É o que dá fazer sem pensar em primeiro lugar.

Não se pode dizer que, na actualidade, se viva um tempo diferente. Toda a gente quer medidas concretas para sair da crise. Acções. Gestos que nos façam sair desta situação. Mesmo que esses movimentos sirvam apenas para criar a ilusão de mais movimento.

Na viragem para o século XXI, subsistiram as visões anti-intelectuais das décadas anteriores; em parte, o mundo acusou-os de terem contribuído para dois dos mais flagrantes constrangimentos do século XX (fascismo e comunismo). Mas a ordem pós-política e pós-ideológica saída da queda do Muro de Berlim, com uma organização social assente no mercado capitalista, nos estados liberais e na política reduzida a mera administração social, também soçobra. Pelo menos na Europa e nos EUA. A China, a Índia ou o Brasil parecem ser outra história. Pelo menos por enquanto.

Em parte foi esse consenso à volta do capitalismo que nos fez pensar que não valia a pena mudar. "Novas utopias, nem pensar!", dizia-se, "mais vale aperfeiçoar o que temos." Mas agora, com o desencanto da política e o aparente esgotamento da religião, talvez tenha chegado a hora de pensar noutras formas de viver em sociedade.

Em parte, é por isso que intelectuais como o esloveno Slavoj Zizek, os franceses Alain Badiou ou Jacques Rancière, o polaco Zygmunt Bauman, o alemão Peter Sloterdijk, o americano Noam Chomsky ou o escritor peruano Mario Vargas Llosa são ouvidos em todo o mundo. Não ficam a meditar de si para si. Chegam às massas.

Às vezes são interpretados à superfície, e o seu sucesso tem efeitos mais perversos do que benéficos. Fica-se com a sensação de que são mais citados do que lidos. E, em paralelo, floresce uma indústria de livros vácuos, um tipo de filosofia de auto-ajuda que propõe soluções miraculosas para os destinos colectivos ou individuais.

Nem tudo é salutar, mas a sua visibilidade acaba por constituir, como nos diz o ensaísta e programador António Pinto Ribeiro, "um "upgrade" na abordagem aos problemas": "Põem-nos em confronto com as questões do mundo de uma forma mais elaborada, em relação àquilo que é a média informação, em particular das televisões."

Há uma nova disponibilidade para os ouvir. Dir-se-á que as ideias, o pensamento e os intelectuais nunca nos abandonaram. É evidente. Foucault, Deleuze, Bourdieu, Derrida, Baudrillard e tantos outros não deixaram de nos desafiar. Mas agora parece existir um contexto que nos faz estar mais receptivos para os ouvir, para com eles discutir, para, juntos, imaginarmos novas metas. Isso, claro, e o facto de vivermos num mundo de comunicação acelerada e global, no qual a Internet se posiciona como espaço de todos os debates.

Mas porquê estes e não outros? Talvez porque, neste momento de desordem - face aos desequilíbrios económicos, às rupturas sociais, aos riscos ecológicos, à percepção distorcida do mundo transmitida pela Internet -, alguns deles façam perguntas (sobre assuntos tão diversos como o fundamentalismo, a tolerância, a interculturalidade, a globalização, o consumo, a felicidade, o vazio) que nos podem ajudar a chegar a algumas respostas. Ou talvez porque existem cada vez mais pessoas a achar que não vamos lá com soluções circunstanciais. "Questionar permanentemente e pôr em dúvida as formulações ideológicas do mundo", diz Zizek, é a nossa tarefa.

A filosofia está na rua?

Zizek ou Rancière acabam por personificar a ideia de que o homem contemporâneo é o que desenvolve um pensamento crítico e criativo, cruzando saberes, entendendo a complexidade onde se insere. Em Portugal ainda todos querem ser engenheiros e os burocratas reinam nos lugares de poder. Mas o especialista que amplia uma área, deixando na sombra as restantes, faz cada vez menos sentido. Hoje as melhores empresas querem pessoas que trabalhem com conceitos operatórios. Não espanta que Sloterdijk diga que "o leque de opções profissionais para os filósofos nunca foi tão grande": "Podem fazer tudo, até dirigir bancos."

Hoje parece necessário regressar a um saber mais vasto. Estudar pelo prazer de aprender. Cruzar saberes. Conhecer para alcançar outras formas de ver a existência. Não ter medo de ver mais longe. A tecnologia confronta-nos todos os dias com a ideia de que nada é impossível, diz Zizek, mas quando se trata de pensar novas soluções socioeconómicas ficamos presos à realidade, rejeitando as utopias.

Nos Estados Unidos, os intelectuais mais conhecidos escrevem para os jornais, colaboram com artistas de diferentes disciplinas, dão palestras públicas e são presença regular na rádio ou na TV. Há neles desejo de rua. Um documentário de 2009 ("Examined Life - excursions with contemporary thinkers") dava conta dessa pulsão, evocando a Grécia antiga de Sócrates passeando entre os atenienses, colocando alguns pensadores (Peter Singer, Martha Nussbaum, Judith Butler, Cornel West ou Zizek) literalmente na rua, simbolicamente retirando o conhecimento da sua Torre de Marfim.

"Não me revejo nos publicistas que oferecem um pouco de filosofia, nem na filosofia académica, de mau humor, que não consegue fazer a ponte para as grandes questões gerais", dizia recentemente o filósofo Peter Sloterdijk. "Só faz sentido praticar a filosofia hoje reavivando a tradição sofista de participar em qualquer debate. Para tal, precisamos de seres humanos que tenham um conhecimento mais geral da vida, da política, da ciência, da arte."

Sloterdijk é um novo tipo de filósofo, não académico, literário, que proclama que é necessário diminuir a distância entre o público comum e as elites. Há um ano, em conversa com o inglês Angus Kennedy, do Institute Of Ideas, este dizia-nos o mesmo: "No século passado, intelectuais como Jean-Paul Sartre, ou cientistas como Einstein, conseguiram estreitar o fosso ao nível da linguagem existente entre o público e as chamadas elites, fazendo palestras em bares, para pessoas comuns, por exemplo. Hoje não temos isso. As pessoas refugiam-se na especialização e nas universidades utiliza-se uma linguagem difícil. Não se traz o debate para a rua. E as ideias têm de ser debatidas abertamente."

Na mesma linha, António Pinto Ribeiro evoca os famosos Cafés Filosóficos de Paris "onde se explicava às pessoas o que era a filosofia e, depois, a psicanálise e a literatura". "O Zizek acaba por vir dessa tradição, já que nos países do antigo Leste Europeu o debate nos cafés, ou nas salas das universidades, é uma tradição."

O intelectual-performer

Alguns destes pensadores têm uma agenda preenchida, pulando de seminários para palestras, em diferentes partes do mundo. Têm de ser bons comunicadores. A razão da sua visibilidade reside numa combinação de factores. "Há uma dimensão de espectáculo que está associada a muitas dessas figuras e que implica talento, capacidade de constituir um discurso para grandes audiências e qualidades até de performer", diz Pinto Ribeiro.

Zizek é a apoteose disso, com uma postura física nervosa, cheia de tiques, que, em vez de constituir ruído comunicacional, atribui-lhe uma identidade. Não se pode dizer que seja encenação, mas acaba por constituir um factor de atracção. "Tem noção do tempo e da adrenalina que faz com que a sua relação com o público seja determinante nas tensões que vai gerando", avalia Pinto Ribeiro.

Alguns deles têm também a capacidade de tornar aparentemente fáceis questões complexas, recorrendo a exemplos mundanos. São aliás, às vezes, desacreditados por isso. É recorrente falar-se da facilidade com que Zizek recorre a exemplos da cultura popular (cinema, TV, música). Mas quem os deprecia assim desacredita-se a si próprio, porque o valor de um pensamento é atribuído pela interpretação, não pelo objecto da mesma, e pela capacidade de estabelecer ligações não previstas.

A tradição de os intelectuais se ocuparem de coisas mundanas é uma constante do pensamento ocidental. O francês Roland Barthes ou o português Eduardo Prado Coelho eram mestres nisso. Ambos mostravam que um saber não é intrinsecamente bom ou mau por ser transversal ou especializado. Há maus pensadores transversais e especializados. E bons também. Ponto.

A verdade é esta: os livros e as teorias de Zizek ou Ranciére são bastante complexos. Ouvir algumas das coisas que dizem em conexão com a actualidade política ou social é uma coisa, lê-los com profundidade é outra bem diferente. "O Zizek faz pequenas sínteses, geralmente utiliza exemplos que são relativamente conhecidos do ponto de vista mediático e tudo aquilo parece uma vulgata de fácil aprendizagem, mas na verdade não é", diz Pinto Ribeiro. "Os problemas de fundo (da tradição filosófica, ou da psicanálise, ou mesmo do cinema) que ele aborda exigem um trabalho de descodificação, capacidade de leitura, tempo e concentração. Ele ilude um pouco isso, porque as pessoas também gostam de ser iludidas com esse lado aparentemente mais reconhecível", conclui.

O ensaísta e professor de Estética na Universidade de Paris I, Jacinto Lageira, há muitos anos a residir em França, vai mais longe: "os textos do Zizek são super complexos. Nunca percebi como é que a generalidade das pessoas diz ser capaz de os compreender."

A visibilidade de Zizek ou Badiou pode contribuir para que a filosofia chegue ao grande público, mas a sua reputação também pode concorrer para ocultar quem está na retaguarda e não é capaz de ocupar os palcos mediáticos com a mesma desenvoltura.

"Pensamos que esses intelectuais vão fazer com que o público leia outros autores, ou estar a par de outros debates e conceitos, mas é o contrário que se está a passar", reflecte Lageira. "É um problema muito recorrente com os intelectuais - os fãs. De repente, só lêem o Zizek e só as suas ideias se impõem. O intelectual, e quem o lê, tem de discutir, ouvir os outros. É isso o espaço público. Mas os fãs desses autores, muitas vezes, só querem perceber o mundo a partir da grelha de leitura do seu autor preferido. E isso impede o debate."

É como se as pessoas procurassem, sofregamente, uma figura carismática, uma espécie de líder, alguém que lhes dissesse qual o caminho a seguir. O que acaba por constituir também um risco.

"Em França, em particular, existe muito esse perigo entre os intelectuais", diz Lageira. "No [linguista americano] Noam Chomsky não sinto isso, nem no [filósofo e sociólogo alemão] Jürgen Habermas. Mas o Badiou, por exemplo, é uma figura simbólica, uma espécie de Pai, que representa a velha figura do intelectual. É o "maître-à-penser" - aquele que vai dizer a verdade. E a questão é: deve-se seguir assim, cegamente, alguém, ou debater? É como se a figura do fã ficasse à espera que lhe digam o que tem de pensar."

Entretanto, em Portugal

Às vezes é nas zonas mais nebulosas da actividade intelectual que encontramos as ideias mais estimulantes. António Pinto Ribeiro dá o exemplo de intelectuais africanos ou latino-americanos, como o antropólogo argentino Nestor Garcia Canclini, capazes de propor um pensamento ousado a partir da digestão da tradição americana ou europeia. Lageira dá o exemplo do grupo de pesquisa MAUSS (Movimento Anti-Utilitarista das Ciências Sociais), criado pelo sociólogo Alan Caillé, que não tem o reconhecimento de Badiou ou Zizek, mas em quem identifica ideias mais emancipadas, um trabalho verdadeiramente crítico e uma efectiva alternativa ao sistema económico e social, fundado a partir do "Ensaio Sobre a Dávida", do antropólogo Marcel Mauss.

Em países como Inglaterra, Alemanha ou França, as televisões, as rádios e os jornais acolhem estes pensadores. Em Portugal, mesmo no contexto actual, prevalecem, na maior parte dos casos, os economistas e políticos do costume. "Aquilo que poderíamos denominar "espaço público", no caso português, é muito limitado", reflecte o filósofo António Pedro Pita, coordenador do Grupo de Investigação "Correntes Artísticas e Movimentos Intelectuais" do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra.

"As condições de discussão, aquilo que põe em movimento as ideias, é reduzido, pouco profundo e intenso. Encontramo-nos pouco, discutimos pouco, temos receio do desacordo, confundimos o formular de uma crítica com magoar ou ser magoado pelo outro", continua.

Do lado dos média, diz-se que a maior parte dos pensadores portugueses tem dificuldade em expor complexidade com simplicidade. Estes argumentam que, quando as suas ideias são expostas, são-no quase sempre de forma redutora e superficial. Haverá razão de ambos os lados da barricada.

Claro, há sempre algumas excepções (Eduardo Lourenço, Boaventura Sousa Santos, José Gil) para confirmar a regra da pouca evidência. Mas não passam disso. Em França há uma emissora pública de rádio, a France-Culture, com emissões diárias sobre questões de enquadramento filosófico para um público vasto e fiel, que dá lugar aos intelectuais conhecidos (Badiou, Ranciére, Bernard Stiegler, Georges Didi-Huberman, Jean-Marie Schaeffer, Bernard Henry-Levy, Lipovetsky), mas também aos emergentes.

Na Alemanha, por exemplo, Peter Sloterdijk, com o colega Rudiger Safranski, apresentam na TV o programa "O Quarteto Filosófico", onde são abordados temas filosóficos que movimentam a opinião pública. Há nesses contextos um património intelectual que é o manuseamento das ideias e a capacidade argumentativa.

Em Portugal, subsiste algum impreparação na comunicação. "Há uma grande distância na forma como o Rancière utiliza a chave da comunicação em comparação com a generalidade dos pensadores portugueses", admite António Pedro Pita. Falta-nos o domínio da retórica, comunicar de forma generosa sem perder a densidade. "Não temos uma tradição em que os intelectuais e, em particular, os académicos, venham para o espaço público equacionar problemas que sejam transversais, e de uma actualidade evidente; falta essa componente de sociabilização", diz António Pinto Ribeiro.

Não temos tradição, mas se há momento em que parece essencial voltar a reflectir e a discutir, à séria, sem constrangimentos, é este. Quando se percebe que o caminho traçado não é o mais correcto, mais vale perceber onde se errou e emendar. Ou, no limite, porque não, construir outro itinerário, de ideias novas, dialogando com a rua, reagindo a estímulos não antecipados, relacionando-os com a experiência diária, comunicando complexidade com inteligibilidade. Pelo meio, questionando certezas, assumpções éticas, preconceitos e responsabilidades, sem receio de criticar os intelectuais de quem se gosta. E sem receio de nos criticarmos a nós próprios.

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