Visão de um "Salazar totalmente antifascista"

Frente a uma câmara de filmar, ele fala de jacto, como falou sentado no sofá da sua casa no Restelo, ao lado da mulher com quem se casou há quase 60 anos e com quem tem cinco filhos. Vive empolgado cada programa, cada terra, cada local que visita, e conta histórias como se tivesse assistido a tudo. Tome-se um momento do programa que grava na cidade de Beja: "Chegou a barbárie e deixou a charneca coberta de escombros fumegantes e cadáveres a apodrecer. Os mouros chegam e tentam reconstruir..." Os séculos sucedem-se e cada cena tem os pormenores mais extraordinários.Nesta conversa, é do século XX que tem de falar e de novo lá estão os episódios contados em pormenores prodigiosos, diálogos citados como se tivessem sido ontem. Nasceu em Leiria (a terra que produz o maior petisco existente à face da Terra, a morcela de arroz) em 3 de Outubro de 1919, viveu a infância entre o Largo do Terreiro e uma segunda casa da família, em Marrazes, num tempo em que "a maioria da população andava descalça". Começou a aprender a vida com José Saraiva, o pai "professor, escritor, investigador, reitor do Liceu de Leiria, presidente da Câmara de Leiria, presidente da Liga dos Amigos do Castelo de Leiria, director da biblioteca de Leiria", um pai que "foi tudo em Leiria", a quem se deve "o facto de o castelo estar hoje de pé", e que descreve como "livre-pensador e amante da ordem". Passeou nos pinhais em volta da pequena cidade de então, ouvindo as discussões que o pai mantinha com o bispo de Leiria e recorda sobretudo as conversas sobre a questão das "aparições de Fátima", em que o pai não acreditava. Diz que foi nesses longos passeios que aprendeu o valor da tolerância, o reconhecimento de que não existe uma verdade absoluta. Fala brevemente do irmão, António José Saraiva: "Era um criador mental prodigioso. Eu ouvia-o, não discutíamos. Ele era o Sol e eu era a Lua."José Hermano Saraiva forma-se em Lisboa em Ciências Históricas e Filosóficas, em 1939, mas o vencimento de professor liceal não chega para manter a família e tira o curso de Direito. A advocacia abre-lhe diferentes portas. Torna-se conhecido: "Quando eu falava no Tribunal da Boa-Hora despovoavam-se os claustros, iam-me ouvir falar. Eu era realmente uma espécie de tribuno da plebe, defendia gente que estivesse aflita e que tivesse razão." Por outro lado, "isso dava largamente para ter uma vida bonita, para comprar quadros como vê nesta casa, coisas do século XVI, encadernar os livros. A advocacia foi o que me permitiu educar os filhos, ir ao estrangeiro... Mas criou-me também a ideia de grande orador, e foi isso que me levou à política."Já então dava aulas no Liceu Passos Manuel, onde diz que teve alunos brilhantes mas não quer destacar nenhum nome. Deu aulas também no Gil Vicente e no Rainha Dona Amélia e foi, por um curto período, reitor do Liceu D. João de Castro, um dos raros liceus mistos de Lisboa. Conta que acabou com as restrições ao convívio entre rapazes e raparigas - antes confinadas a uma sala apropriadamente denominada "Gyneceu". Mas não viu - não vê - vantagens nem desvantagens no ensino misto.Ocupou cargos políticos e afirma que não concordava com a censura nem a PIDE mas que nunca foi da oposição. Foi deputado por Castelo Branco, de 1957 a 61, procurador da Câmara Corporativa de 1965 a 69. Convidado para ocupar a pasta da Educação Nacional, tomou posse em Agosto de 1968, pouco antes do acidente que afastou da efectiva presidência do Conselho de Ministros o professor que o tinha levado para o lugar, "o homem mais inteligente que conheci", António de Oliveira Salazar. Continuou ministro com Marcelo Caetano, mas acentua as grandes diferenças entre os dois. Elogia em Américo Tomás um homem honrado, aluno distinto da Escola Naval, classificado com 20 valores em Matemática na Faculdade, mas acrescenta que não tinha o menor sentido político e ainda menos o dom da palavra.O 25 de Abril surpreende-o em Brasília, onde era embaixador desde 1972, e não volta a ocupar lugares políticos. Dedica-se a uma acção que o apaixona visivelmente, a de divulgador da História de Portugal. A globalização e a rapidez da informação preocupam-no: "A verdade deixou de ser o mundo. A verdade passou a ser a notícia. A gente vive num mundo de realidade virtual. É como os jornalistas no-lo descrevem. No-lo inventam. No-lo servem."Porque o mundo mudou de uma forma "extremamente rápida no plano dos factos técnicos e muito mais lenta no plano das ideias e dos factos teóricos. É como um rodado de um carro em que uma roda anda mais depressa do que a outra. A conclusão é fatal: "Nós estamos a terminar um século que se pode considerar trágico."

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