No início de Dezembro um pequeno sindicato, o Sindicato de Todos os Profissionais da Educação — Stop, convocou uma greve por tempo indeterminado. O Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE) fez o mesmo, mas só ao primeiro tempo. Nas últimas semanas, houve escolas a fechar, por vezes vários dias, e muitos pais preocupados com a sucessão de aulas perdidas. Há mais protestos no horizonte. E uma insatisfação, um mal-estar latente. A que se deve?

O clima de guerra instalou-se com o início da negociação da revisão do processo de recrutamento de docentes. Muitos viram nas ideias apresentadas pelo ministério uma tentativa de passar a escolha para a mão das câmaras municipais — o que o ministro da Educação já desmentiu várias vezes. “O Governo nunca propôs — repito, nunca — qualquer processo de municipalização do recrutamento de professores”, afirmou João Costa no Parlamento, a 4 de Janeiro, lamentando “alguma desinformação”. As negociações vão prosseguir. Mas a verdade é que são muitas as razões que os professores apontam para alimentar este clima de insatisfação.

Falámos com três professores, de diferentes zonas do país. Pedimos que explicassem esta revolta, contando-nos como é a sua vida. E é assim.

“Se me faltassem 15 ou 20 anos para a reforma de certeza que estava em greve ou arranjava outra profissão. É muito difícil quando se gosta disto e se vive com esta frustração que os professores sentem”

Maria do Sameiro Pereira
62 anos
Escola Augusto Lessa, no Porto

A professora que está a dois anos da reforma

A sala de aula nunca está em silêncio. Há sempre um burburinho a percorrer o espaço ocupado pelas 21 crianças do 3.º A, da Escola Augusto Lessa, no Porto. Com 42 anos de aulas às costas, a professora Maria do Sameiro Pereira, de 62 anos, lá lhes vai dizendo para se calarem, mas sem grande sucesso. E não se incomoda muito. A cerca de dois anos da reforma, diz que a experiência lhe trouxe mais paciência e recusa estar cansada da escola. “A gente chega aqui e esquece-se logo dos problemas”, diz. E ela já viu muitos, ao longo da carreira. O que se está a passar agora, contudo, é diferente, explica.

Diz que “a municipalização dos concursos foi a gota de água que fez transbordar o copo” — é uma das muitas docentes em Portugal que temem que a “municipalização”, apesar dos desmentidos do Governo, esteja em cima da mesa.

A verdade é que Maria do Sameiro Pereira não está em greve, mas não põe de lado fazê-la ou ir a uma manifestação, se os sindicatos se unirem.

Na escola da freguesia de Paranhos ainda não se retiraram as decorações de Natal que enchem os corredores. A campainha que assinala o início e o fim das aulas é tocada por uma funcionária, atenta ao relógio de pulso, para não falhar a hora certa. Na sala da professora Maria do Sameiro há meninos que ela acompanha desde o 1.º ano e outros que foram chegando entretanto: duas crianças ucranianas, uma menina brasileira, um rapazinho angolano.

Esta será a sua última turma e é, sobretudo, por estar nesta fase da sua vida — a cerca de dois anos da reforma e no topo da carreira — que a professora nascida em Arcos de Valdevez, e que dividiu os anos de ensino entre Castelo de Vide e o Porto, diz que não está agora envolvida nas lutas que ocupam os colegas, apesar de concordar com todas as reivindicações.

“Neste momento estou mais focada nos alunos. Eu percebo a luta, já fiz montes de greves, mas também não concordei que não houvesse uma união entre sindicatos”, explica. Se, nos próximos tempos, essa união vier a existir ou for convocada uma greve geral, admite marcar presença em ambas.

A acontecer, será mais uma luta — a última, provavelmente, da sua carreira —, nos longos anos que leva de profissão. E uma profissão à qual foi parar “não por vocação”, refere, mas por questões mais prosaicas: a família não era rica, ela até preferia ir para a faculdade e estudar línguas, mas isso implicava um curso de cinco anos e a formação para ser professora, na altura, implicava apenas três. “Fui para o Magistério para começar a ganhar dinheiro mais cedo. E depois, apaixonei-me”, sintetiza.

Ouvi-la é ouvir várias vezes a palavra “orgulho”, pelo trabalho que faz, e também “magia”, que associa ao momento em que sente que está a abrir todo um novo mundo às crianças que lhe vão parar às mãos, sem conhecerem sequer as letras. E é também ouvir falar de uma realidade que, apesar de ter apenas algumas décadas, parece a anos-luz de distância.

Quando diz “Eu vi nascer a Internet”, ou relembra como, no início da carreira, “não havia fotocópias” e as fichas que arranjava para os alunos eram feitas em “copiadores de gelatina”; quando recorda que, nessa altura, como lhe aconteceu, bastava ter 180 dias de aulas dadas para entrar para o quadro; ou quando diz que teve alunos que nunca antes tinham visto um lápis de cor, ou segurado num lápis sequer, e se lembra das aulas dadas na aldeia de Moinho do Torrão, em Gavião, onde tinha uma turma única com as quatro classes. “A aldeia não tinha luz eléctrica, as mães levavam um braseiro dentro de um pneu para nos aquecermos.” Foi aí, nessa aldeia sem luz, que se deparou com um problema de que ainda hoje recorda: “Uma vez saiu num texto a palavra 'elevador'. Como é que se explica um elevador a uma criança que nunca tinha saído daquela aldeia pequeníssima? Saí com a sensação que não chegaram a perceber.”

"Eu percebo a luta, já fiz montes de greves, mas também não concordei que não houvesse uma união entre sindicatos”

E de todas as mudanças que viveu, e às muitas críticas que deixa ao Ministério da Educação, há pelo menos uma alteração que lhe merece um elogio espontâneo, depois de recordar a experiência da pequena escola alentejana: “Ainda bem que fecharam estas escolas, porque era terrível, para os miúdos e para nós.”

Mas as boas referências da política nacional acabam quase por aqui. Sobra-lhe ainda tempo para elogiar Marçal Grilo, ministro da Educação entre 1995 e 1999, e, para ela, “o melhor” que conheceu. Foi ele que permitiu que professores como ela, que tinham apenas o equivalente ao bacharelato, juntassem dois anos à sua formação, conseguindo, assim, progredir na carreira. “Quando tirei a licenciatura, subi dois escalões, para o 6.º. Esta medida permitiu que muitos de nós subissem na carreira. Eu atingi o topo, algo que muitos dos meus colegas nunca vão conseguir, por causa das quotas.”

Esse é um problema grave — como os anos de serviço que “roubaram” aos professores no tempo da troika; o flagelo dos professores contratados “que andam há 20 anos com contrato e nunca vão entrar para o quadro”; as avaliações de desempenho “injustas”; as mudanças no acesso à reforma que a afectaram directamente. “Quando o meu marido se reformou, faltavam-me cinco anos para a reforma, e, de um dia para o outro, passaram a faltar 15.”

Tudo isto ela desfia sem precisar de pensar, porque os problemas são antigos, vêm-se acumulando, e conhece-os bem.

Mas, apesar de tantos amargos de boca, continua a defender a escola pública com unhas e dentes. E diz que é também por ela que as lutas dos professores se fazem. “Que outra maneira temos de manifestar o desagrado, quando vemos que a escola pública se está a afundar? Isto é um prémio para o ensino privado. Se isto continua assim, quem quiser que os filhos estudem, faz um esforço e põe-nos no privado”, lamenta.

E, acima de tudo isto, insiste, estão os alunos. “Os professores estão a lutar pela escola pública, mas chegam à sala de aula e esquecem-se e lutam pelos alunos, porque não dá para ser de outra maneira. Não podemos estar aqui alheados dos alunos.”

No andar de baixo, numa sala acanhada onde se reúne com colegas em torno de uma pequena mesa, Sónia Cruzeiro, subdirectora do Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade, onde a Augusto Lessa está integrada, sorri, quando vê Maria do Sameiro abrir a porta e diz que ela é “um exemplo” para os colegas que chegam, por causa desta sua postura.

“O testemunho que ela dá é que é preciso ter paciência, e lutar, mas sem nunca descurar os alunos. E isso é sem dúvida muito importante. E os colegas mais novos dizem: 'Caramba, se temos aqui uma colega que anda há 40 anos a lutar, mas sente-se apaixonada pela profissão e sente-se dedicada à profissão, temos de seguir esse exemplo', conta, longe dos ouvidos da colega com quem convive há 18 anos.

Sobre as greves e manifestações actuais ambas concordam que são “diferentes”, porque se prolongam no tempo. E que são a marca do cansaço extremo a que os professores chegaram. Se pudesse dizer alguma coisa ao ministro da Educação, Maria do Sameiro Pereira pedir-lhe-ia que “ouça os professores e que os respeite”. E que rejeite a postura que tantas vezes os professores acabam por colar aos governantes. “Os ministros deviam ser os principais representantes dos professores e parece que são sempre o carrasco”, lamenta.

No topo da carreira, leva para casa dois mil euros e a felicidade de não sentir na pele o desprestígio e desrespeito de que muitos colegas se queixam. E a alegria de antigos alunos ainda a convidarem para tomar um café ou lhe pedirem para assinar a faixa do fim de curso. Mas não tem a certeza se, dada a oportunidade, optaria pela mesma profissão, caso pudesse voltar atrás. “Acho que gostaria de experimentar o meu outro plano de vida, estudar línguas”, diz. E, se tivesse menos 20 anos, acredita que o seu dia-a-dia, hoje, seria muito diferente. “Se me faltassem 15 ou 20 anos para a reforma, de certeza que estava em greve ou arranjava outra profissão. É muito difícil, quando se gosta disto e se vive com esta frustração que os professores sentem.”

“Em Sines vivia num anexo, e as baratas passeavam-se pelo quarto. Em Peniche, vivia num bungalow, num parque de campismo”

Ricardo Oliveira
42 anos
Escola Secundária João de Deus, em Faro

O professor contratado que vai percorrendo o país

A namorada reside em Vila Nova de Gaia; ele, natural de Arouca, dá aulas de Geografia em Faro. Os afectos estão separados por uma barreira de 500 quilómetros, mas o casamento está no horizonte. O rés-do-chão da moradia, onde mora actualmente, é partilhado com uma jovem hospedeira de bordo da Ryanair. Ricardo Oliveira, também bombeiro voluntário, sente que há dentro do peito, e na revolta dos docentes, um “fogo que arde sem se ver”, como diria o poeta. “Ser professor é uma angústia”, diz, lembrando as andanças que o têm levado pelo país fora ao longo de duas décadas.

A vida deste docente contratado é comum a muitos outros colegas que carregam com a “casa às costas” no final de cada ano lectivo. Em Quarteira, onde leccionou em 2017 — a substituir uma colega que meteu baixa — só lhe alugaram um apartamento T0 com uma condição: “Dia 31 de Maio tem de sair.” Nada de que não estivesse à espera, porque a situação já é considerada “normal” para quem escolhe o Algarve para trabalhar. “A partir do dia 1 de Junho é impossível alugar alguma coisa, porque é tudo para o turismo”, explica.

Nesse ano, não foi preciso ir para uma tenda no parque de campismo, como já tinha programado. “A colega [que estava a substituir] regressou à escola”, e ele voltou a entrar na bolsa dos nómadas do ensino.

Ao longo da carreira conheceu o país, a partir da sala de aulas, desde Valpaços (Guarda), passando por Peniche, Sintra, Amadora, Monte da Caparica, Castro Verde.

“Deixei de concorrer para a zona de Lisboa, porque a nós, professores contratados, só nos calha os bairros sociais, depois de os colegas meterem baixa, por cansaço, ou por não aguentarem a pressão”, prossegue. No ano passado saiu-lhe uma escola de Mangualde. “A meio do ano, rescindi o contrato. Não aguentava.”

Fez as malas, emigrou para a Suíça, a pensar no que deixava para trás. Através de um amigo arranjou trabalho na agricultura, a plantar e podar vinhas. Ao fim de três meses, o patrão disse-lhe: “Ricardo, tu és muito esforçado mas não nasceste para isto.” Concordou. A enxada que usava passou para as mãos de outro português: “Um alentejano que trabalhava na agricultura desde os 14 anos.”

O trabalho não lhe deixou saudades, mas o ordenado ficou a fazer falta. “Punha em Portugal mais dinheiro do que a minha prima ganhava de ordenado como médica, pneumologista."

Na Escola Secundária João de Deus, em Faro, os alunos acham “fixe” o professor/bombeiro. Em Arouca, no período de férias, desenvolve o projecto A Vila no Meu Pé, levando os visitantes a conhecer as histórias das pessoas e o património da terra, um serviço prestado de forma gratuita. E nos bombeiros da terra serve como voluntário, ajudando a apagar fogos ou dando auxílio em cuidados de saúde. “Ser bombeiro foi o resultado do grande incêndio de 2005”, justifica. O chamamento (ou “bichinho”, como lhe chama) surgiu quando andou, enquanto civil, a ajudar a apagar as chamas. “Caramba, estou a fazer falta lá em cima e estou aqui, em Faro”, diz, como se ouvisse a sirene a tocar, embora tenha diante do olhar o espelho de água da ria Formosa.

“Do ponto de vista financeiro, é difícil gerir um ordenado de 1120 euros”

Apenas recorda um caso de incêndio em que não alinhou, como costuma fazer, quase por impulso natural: “Tinha a namorada comigo.” Os colegas, conhecendo-lhe o temperamento, comentaram: “Isso é mesmo para casar.” O sonho ainda não se tornou realidade. O facto de ser “professor contratado, sem perspectivas de carreira”, deixa-o no limbo.

A namorada, engenheira química, trabalha numa empresa de análises de água, em Vila Nova de Gaia. “Mandou o currículo para a empresa Águas do Algarve, não teve resposta”, adianta. Questionado sobre o lugar onde gostaria de morar, não revela grandes ambições. “Desde que encontre um sítio onde me possa efectivar, será esse o local [para constituir família].”

Para já, as visitas a casa só acontecem uma vez por mês. “Do ponto de vista financeiro, é difícil gerir um ordenado de 1120 euros”, justifica.

Toca a campainha, a turma já está à porta da sala de aula. Os risos e os rostos alegres dos estudantes reflectem a satisfação do descanso do fim-de-semana. É segunda-feira de manhã, os noticiários são dominados pelo assalto na Praça dos Três Poderes, no Brasil, e pelas inundações no Norte do país. “A chuva em Arouca, professor, fez grandes estragos”, diz Francisco Martins, a meter conversa. Por coincidência, ou talvez não, catástrofes naturais, vulnerabilidades e outros assuntos relacionados com as alterações climáticas iam ser o tema da lição.

Ao fim de um cerca de um quarto de hora, surpreende a turma: “Podem puxar pelos telemóveis.” E parecia que estava a dar uma prenda dos Reis aos estudantes. “Eh, lá!”, reagiu Rafael Leão. Mais tarde, haveria de explicar ao PÚBLICO: “Os miúdos, actualmente, não conseguem viver sem o telemóvel, é como se fosse parte do corpo deles.” O que há fazer, sublinha, é “tornar o equipamento parte integrante da aula, sem permitir os abusos”. Manda descarregar a aplicação meteorológica Windy. Nos ecrãs surgem imagens de tufões e tornados, pretexto para fazer a revisão da matéria dada. “Ser professor é uma angústia, mas nós afeiçoamo-nos aos alunos.”

Alexandra Borysenkova, filha de pais ucranianos, nascida em Portugal, destaca-se pela atenção na aula. No fim, deixa cair uma confidência: “Eu não gosto desta matéria, prefiro Matemática.” Há uma explicação: até aparecer Ricardo, os alunos desta turma do 9.º ano não tinham tido professor nesta disciplina desde o arranque do ano lectivo. “Não consigo contratar professores”, justifica Carlos Luís, director do Agrupamento de Escolas João de Deus, acrescentando que discorda que seja possível recrutar “docentes sem licenciatura”.

Safira Caetano também destaca a Matemática como disciplina da sua preferência. Na Geografia está tentar recuperar tempo perdido. “No ano passado, em São Brás de Alportel, tive um professor que vinha uma semana, faltava duas.” Este ano, revela, sentiu que o novo professor estava a pisar terreno desconhecido na relação com os alunos. “[Depois,] começou a adaptar-se a nós; e, agora, sim, gosto do professor Ricardo: explica e comunica bem.” O colega Francisco Martins realça: “É fixe ter um professor que é bombeiro, agricultor e guia turístico.”

O desenraizamento social é uma das barreiras que os docentes têm de enfrentar cada vez que chegam a uma nova localidade, com o sentimento de que estão de passagem: “Vivemos, essencialmente para suprir necessidades transitórias de uma escola.” Dito de outra forma, só têm lugar no ensino para “tapar buracos”.

A casa onde reside em Faro é o rés-do-chão de uma vivenda de linhas arquitectónicas modernas. A cozinha e a casa de banho são espaços comuns, usados à vez com outra inquilina. “Mas isto é um luxo”, diz o professor, comparando o alojamento de Faro com outros sítios por onde passou. “Em Sines vivia num anexo, e as baratas passeavam-se pelo quarto.” Em Peniche, recorda, “vivia num bungalow, num parque de campismo”. Por isso não tem dúvidas em afirmar: “Este é o melhor sítio que tenho, desde que dou aulas, há quase 20 anos.” No entanto, a mala de viagem está sempre pronta a rolar para lugar incerto — essa é a sina de um professor itinerante.

“Claro que, aos 50 anos, gostaria de não ter de estar a perguntar-me se no final deste ano vou ou não conseguir efectivar. Ou durante quanto tempo é que vou continuar a ganhar pouco mais de mil euros por mês. Ou sequer se vou conseguir colocação no ano seguinte”

Teresa Ribeiro
50 anos
Escola Secundária de Sacavém

A professora que sabe que nunca chegará ao topo da carreira

O relógio de Teresa Ribeiro marca as 14h30, quando iniciamos a caminhada de regresso a casa depois de mais um dia de aulas. Quando a professora de História saiu de casa, ainda de noite e antes do primeiro raio de sol espreitar no horizonte, o dia anunciava-se chuvoso e frio. Mas, nesta tarde de Inverno, o sol preferiu espreitar e o céu está limpo. Por isso, as três camadas de roupa de Teresa revelam-se um tanto incomodativas face ao passo acelerado no percurso de 15 minutos entre a Escola Secundária de Sacavém e a estação de comboios.

“É verdade que há dias em que saio antes das 15h, a maior parte das pessoas não sai do trabalho a essa hora e, nesse sentido, sou privilegiada”, reflecte. Mas terminar um dia de aulas não é sinónimo de não levar trabalho para casa. Aliás, essa é mais uma excepção do que a regra.

“Os meus filhos sempre me viram a trabalhar em casa e tento também incluí-los nisso. Chamo-os sempre que preparo algo novo, pergunto por possíveis melhorias e se, enquanto alunos, iam gostar daquilo, por exemplo”, começa por explicar. “Claro que se queixam de que trabalho muito, mas depois quando percebem as vitórias, porque também as há, ficam felizes.”

Quando, há 16 anos, depois de vários anos sem conseguir vaga para a docência, recebeu uma proposta de trabalho para um horário de 20 horas lectivas semanais numa escola em Sintra não hesitou. “Pensei: é isto que quero fazer, foi para isto que me formei.” E assim começava a viagem enquanto docente de História. Hoje sabe de cor a linha do caminho-de-ferro da Azambuja, já que todos os dias faz o mesmo caminho, uma viagem de 25 minutos de comboio, com o Tejo a espreitar pela janela, entre Castanheira do Ribatejo e Sacavém.

A rotina diária é invariavelmente a mesma: acorda às 6h, sai de casa ainda de noite, conduz uns dez minutos entre o Carregado e a estação de Castanheira do Ribatejo e, aí, começa o percurso, já de comboio, até Sacavém. “É o meu momento de descontracção”, diz. “Aproveito para ler, porque em casa não tenho tempo e é uma das coisas que me dão muito gosto. Sinto mesmo essa necessidade.” Neste momento, o livro que a acompanha dentro da mochila é A Mulher do Dragão Vermelho, do jornalista e autor José Rodrigues dos Santos. É um dos escritores preferidos, a par de Domingos Amaral.

Uma vez em casa, é preciso organizar a rotina familiar, as refeições, por exemplo. Teresa é casada (o marido pediu a reforma antecipada por motivo de doença) e tem dois filhos de 19 e 14 anos. O mais velho está no segundo ano da faculdade, na licenciatura de Gestão de Empresas em Santarém, e o mais novo no 9.º ano de escolaridade. A escolha da faculdade não deixou de parte a proximidade a casa — como muitas das opções de vida de Teresa, nomeadamente nos concursos nacionais.

É depois de jantar, quando há mais sossego e “os rapazes estão encaminhados”, que Teresa se dedica à escola. Entre corrigir ou preparar testes, avaliar trabalhos, preparar aulas ou preencher grelhas, “há sempre alguma coisa para fazer, alguma burocracia”. Mais coisa menos coisa, esse tempo que dedica ao trabalho em casa varia entre três e cinco horas diárias. “De repente já é meia-noite e penso que também preciso de descansar, porque às 6h da manhã tenho de acordar para um novo dia.”

Ao contrário de muitos professores que percorrem o país de norte a sul, a escolha de Teresa recaiu sempre numa relativa proximidade da zona de residência (no Carregado, município de Alenquer, em Lisboa). “Foi uma opção de vida minha, queria construir família e, já que tinha feito esse sacrifício no início, não fazia sentido depois mudar-me para outra cidade e a família ficar.”

Corria o ano de 1998, quando terminou a formação superior e, nessa altura, o cenário era o oposto do actual, porque “ainda havia muitos professores”. “Tinha os sonhos todos e, por isso, nunca desisti. Acreditava mesmo que ia conseguir uma vaga algures. O tempo foi passando e percebi que estava mais tempo desempregada do que a trabalhar.”

“Posso não mudar nada enquanto cá estiver, mas se deixar isto um bocadinho melhor para quem aí vem então fiz a minha parte."

Foi então que decidiu procurar um emprego mais estável. “Mesmo assim não conseguia, nem em atendimento ao público, porque me diziam que tinha habilitações a mais.” A necessidade aguçou o engenho e do currículo de Teresa passou a constar apenas a conclusão do ensino secundário. “Consegui, logo na primeira tentativa, um emprego numa imobiliária, onde estive oito anos”, explica. “Foi daí que saí para a tal colocação em Sintra.”

Porém, ainda não era desta que a docência iria vingar. “Entretanto tive de fazer um interregno, porque me enganei num concurso. Cometi uma gafe e fiquei fora do concurso um ano. Depois consegui emprego enquanto formadora devido à minha experiência no ensino. E estive outros oito anos numa formação profissional para pessoas com incapacidades e necessidades educativas especiais.” O brilho espreita-lhe no olhar, quando desfia a história. “Cresci muito a nível pessoal”, diz com um sorriso largo que lhe preenche o rosto.

Estes anos, apesar de lhe terem trazido bagagem, custaram-lhe tempo de serviço na carreira. “Durante algum tempo, quando voltei a ser professora no ensino público, eram pequenos horários, é verdade, mas encarava aquilo como um ganho em tempo de serviço e também nunca me sujeitei a ir para fora. Na altura o meu marido tinha saúde e um emprego com um salário melhor do que o meu e íamo-nos governando. É certo que se tivesse ido para os Açores ou para a Madeira, por exemplo, se calhar agora estava efectiva — lá. Não era isso que eu queria.”

Teresa conta actualmente oito anos de serviço na carreira: está no primeiro de dez escalões. No final do mês leva para casa pouco mais de mil euros (tem um salário-base de 1536 euros, que com descontos fica pelos 1190 euros).

“Claro que, aos 50 anos, gostaria de não ter de estar a perguntar-me se no final deste ano me vou ou não conseguir efectivar. Ou durante quanto tempo é que vou continuar a ganhar pouco mais de mil euros por mês. Ou sequer se vou conseguir colocação no ano seguinte. As regras estão sempre a mudar e agora, com toda esta instabilidade e confusão que se instalou com a alteração aos concursos, ainda menos certezas temos.”

Os lamentos de Teresa são transversais à classe docente e é pela perspectiva de melhoria da carreira que a professora de História tem participado em algumas das formas de luta em curso. “No sábado estive na manifestação e este sábado lá estarei novamente. Claro que para isso tenho de adiantar serviço durante a semana, porque no fim-de-semana não vou estar tão disponível.”

“Posso não mudar nada, enquanto cá estiver, mas, se deixar isto um bocadinho melhor para quem aí vem, então fiz a minha parte”, prossegue. “E há tantos exemplos disso na História: as sufragistas que lutaram tantos anos para que as mulheres pudessem votar. Sei que nunca irei chegar ao topo da carreira, nem sequer a meio, mas posso lutar para deixar este lugar melhor do que o encontrei.”

É este o pensamento que norteia muita da forma de ensinar e de viver de Teresa. Olha para a profissão como para nenhuma outra, porque “muda vidas”. “O que me faz gostar tanto daquilo que faço prende-se muito com o facto de podermos começar uma relação com um aluno que não gosta da disciplina e acabar o ano a gostar. Fazê-los pensar, mostrar-lhes que são capazes, despertá-los para o mundo que os rodeia.”

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