VI Congresso de Literacia, Media e Cidadania

“Complexidade da literacia mediática não se limita à desinformação”

Passaram pelo VI Congresso de Literacia, Media e Cidadania, em Lisboa, cerca de 300 congressistas. Ministro da Cultura anunciou que Plano Nacional de Literacia Mediática será criado ainda em 2023.

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Sessão plenária "Novos paradigmas para a Literacia Mediática", com Cristina Ponte, Manuel Carvalho, Fernanda Bonacho, António José Teixeira e Belinha de Abreu Ana Pinto/ESCS

Na altura do primeiro Congresso Media, Literacia e Cidadania, corria o ano de 2011, Constança Vilela ainda estava a aperfeiçoar a leitura e a escrita na escola primária. Doze anos depois, anda entre o foyer e o auditório da Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, de microfone em riste para entrevistar o ministro da educação, João Costa. Está no terceiro ano de jornalismo e já sabe que gostava de trabalhar em imprensa. Sabe também que se quer ser jornalista tem de “perceber que a forma como informar tem de chegar a todos” e que não pode desligar-se de um “sentido de alerta” à desinformação.

Esta é a primeira vez de Constança no congresso e confessa que há temas que são novos para si, mas há outros que “acabam por ser falados no curso de jornalismo, sobretudo questões associadas à desinformação”. Quando soube que a ESCS ia receber este evento organizado pelo GILM - Grupo Informal sobre Literacia Mediática, achou que fazia sentido juntar-se como participante em dose dupla: enquanto estudante, para saber mais, e enquanto jovem jornalista universitária, para fazer a cobertura para a ESCS FM. Como Constança, outros colegas fotografavam, filmavam, entrevistavam e trabalhavam numa sala de redação e na régie. Foram os principais responsáveis pela produção de conteúdos noticiosos ao longo dos dois dias de congresso.

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Constança Vilela, aluna da ESCS, a entrevistar o diretor do PÚBLICO, Manuel Carvalho, na primeira manhã do congresso MARGUERITA MATVIYCHUK/ESCS

Desde a manhã do dia 21 de abril até ao final de tarde do dia 22, sábado, registaram-se na ESCS cerca de 300 congressistas. O VI Congresso de Literacia, Media e Cidadania, o primeiro em formato exclusivamente presencial depois da pandemia, recebeu um grupo diverso, com professores, alunos, investigadores, jornalistas e outros profissionais que trabalham ou que se interessam pela área da literacia mediática. “Transição digital e políticas públicas” era o tema deste ano. Na intervenção do Ministro da Cultura Pedro Adão e Silva, na sessão de abertura, ficou uma promessa: ainda este ano será criado o Plano Nacional de Literacia Mediática.

Das eleições à pandemia: não faltam exemplos

Entre as três sessões plenárias, três conferências, 55 comunicações livres, vários workshops e posters da autoria de mais de 100 investigadores, ao longo do congresso, a presidente da comissão científica desta edição, Fernanda Bonacho, destaca intervenções de Belinha de Abreu, presidente do International Council for Media Literacy — IC4ML, “que trouxe uma perspetiva muito transdisciplinar da literacia mediática na primeira sessão plenária”; os estudos apresentados pela coordenadora do ICNOVA Cristina Ponte; “as questões tão importantes da desinformação” apresentadas pelo investigador do Instituto Superior Técnico Mário Figueiredo, pelo diretor do Centro Nacional de Cibersegurança, Lino Santos, ou pelo coordenador do Iberifier, Miguel Crespo; e o workshop sobre formação de professores dado por Sally Reynolds, da Media&Learning Association. A também coordenadora do Curso de Mestrado em Jornalismo na ESCS menciona ainda o elevado número de comunicações livres que permitiram uma aproximação “aos grandes desafios que se colocam a estas questões de literacia mediática”.

Para os investigadores, o tema-base deste congresso não é uma novidade. Estão, aliás, a trabalhar nele há décadas. Mas os últimos anos fizeram-se acompanhar de novos desafios e momentos que sublinharam a importância de trabalhar a educação para os media. Das eleições norte-americanas que levaram Trump para a Casa Branca até à pandemia da Covid-19, foram várias as oportunidades para espalhar desinformação e notícias falsas — agora com a ajuda das redes sociais para as disseminar mais rapidamente.

A Inteligência Artificial, que dá o mote à semana dos 7 Dias com os Media deste ano, foi também mencionada e debatida em vários momentos. Foi consensual entre os diferentes oradores que esta representa mais um desafio no combate às notícias falsas, mas Divina Frau-Meigs, professora de sociologia dos media na Université Sorbonne Nouvelle, aproveitou o momento para se posicionar contra a ideia de que a IA vai acabar com os empregos, nomeadamente dos jornalistas: “Podemos agradecer ao ChatGPT por nos mostrar que somos necessários”, sustenta.

A complexidade em torno da literacia mediática nos dias de hoje, motivada pelos muitos canais e formatos onde a informação circula e os diferentes temas em que toca, mostra ser necessário pensar no conceito de “transliteracia” — mencionado várias vezes ao longo dos dois dias e destacado por Fernanda Bonacho em declarações ao PÚBLICO na Escola. “A diversidade de oradores que pretendemos trazer a destaque [nesta edição] reflete a complexidade de uma questão que não se limita, por exemplo, à temática da desinformação ou, por outro lado, à tecnologia, ou até a uma intenção pública de um Plano Nacional. Há aqui uma série de atores cuja ação tem de ser articulada para que esta ação seja tratada de forma eficaz”, diz.

Plano Nacional de Literacia Mediática até junho

O convite feito aos Ministros da Cultura e da Educação, Pedro Adão e Silva e João Costa, para participarem no evento não foi inocente, revelou Fernanda Bonacho. “Quando nós escolhemos as políticas públicas e a transição digital como temática para este congresso nós sabíamos que este Plano já estava no plano do governo nas eleições e, portanto, há aqui também um pedido de assumir responsabilidades prometidas num projeto governamental e questionar em que ponto é que estava”.

O Plano Nacional de Literacia Mediática, que junta os ministérios da Cultura e da Educação, não teve um momento de apresentação oficial, mas foram lançadas pistas sobre o que virá a ser. Estará integrado no Plano Nacional de Leitura e pretende ter como alicerces o trabalho que já foi produzido nesta área para, “não inventar mais uma vez a roda, desenhando um novo plano para aplicar de cima para baixo”. “Quando se avança para um plano desta natureza é fundamental ter consciência do trabalho que já foi feito”, mencionou o Ministro Pedro Adão e Silva. Esta é uma perspetiva partilhada pelo Ministro da Educação, João Costa, que, numa sessão plenária no segundo dia de congresso, aproveitou para lembrar que as questões em torno da literacia mediática se prendem com “saber ler, saber interpretar, saber validar informação”.

O Plano Nacional de Literacia Mediática será criado ainda este ano, “no final do primeiro semestre”, e integrará o Plano Nacional de Leitura. O objetivo primordial será “dar condições aos atores que estão no terreno para que prossigam e expandam o seu trabalho, definindo linhas orientadoras gerais”. Deve também identificar as lacunas e dar prioridade aos “elementos da população mais vulneráveis à desinformação”, adiantou Pedro Adão e Silva.

“Falta tempo para pôr isto em prática”

As expectativas para o plano que está por vir são “altas”, tanto por parte de quem estuda o tema, como Fernanda Bonacho, representante da Escola Superior de Comunicação Social no GILM, como para quem terá de o pôr em prática nas escolas: os professores. Na sessão plenária em que o Ministro da Educação João Costa teve espaço para falar sobre este projeto de futuro, uma professora de História pediu a palavra para intervir. “Falta-nos tempo para reflexão e recursos. Eu preciso de não ter oito turmas com um tempo e meio semanal na minha disciplina para poder trabalhar seriamente estas questões”, alertou Cristina Pinheiro, professora no Agrupamento de Escolas D. Dinis, em Lisboa.

Ao PÚBLICO na Escola, Cristina Pinheiro disse estar “otimista” e “entusiasmada” com a ideia de implementar um Plano Nacional de Literacia Mediática, mas reforçou a importância dos recursos. “Nós temos um parque informático muito envelhecido nas escolas, neste momento. Sou capaz de perder meia hora de aula simplesmente para tentar carregar um ficheiro ou para apresentar o trabalho que foi feito”, explica. Considera, por isso, essencial à implementação deste plano que sejam revistas as condições que existem nas escolas, que seja feita uma auscultação do “trabalho que já existe e que pode integrar o plano” e que se libertem os professores de “tanto trabalho burocrático”. “Para podermos ter um tempo para refletir, planificar, experimentar, voltar a refletir, mostrar resultados. Penso que só assim é que se avançará.”

Ainda sobre o Plano Nacional de Literacia Mediática, Fernanda Bonacho deseja que os “atores que têm trabalhado nesta área há muito anos sejam ouvidos” e que as “diferentes variáveis sejam consideradas”: “Não só a tecnologia, não só a política ou não só a educação, mas que de facto haja aqui um ganho construtivo e enriquecedor para os próprios alunos e para a comunidade em geral”. É por isso que espera que também a população mais velha seja considerada nas frentes de ação deste projeto. Porque “é uma questão que toca a todas as gerações”.

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No espaço de comunicações livres foi apresentada de forma didática a plataforma gratuita de criação de jornais escolares digitais TRUE, que junta o PÚBLICO, a Universidade de Aveiro e a empresa de tecnologias digitais MOG. A jornalista e coordenadora do PÚBLICO na Escola Bárbara Simões partilhou com um grupo de professores e investigadores os principais destaques deste projeto, que será disponibilizado em breve, e mostrou como é que se navega na plataforma. Para já, o TRUE está numa fase de testes com quatro escolas-piloto em Arcozelo (Gaia), Porto, Évora e Cacilhas (Almada).

Escolas e agrupamentos do 1.º ciclo ao secundário podem já inscrever-se e começar a criar o seu jornal escolar, ou migrar o jornal em papel para o digital, nesta ferramenta “intuitiva” e “personalizável”. A plataforma de backoffice permite que existam diferentes níveis de acesso dentro da equipa de jovens jornalistas e professores, tal qual numa redação a sério, e sugere a consulta de conteúdos do PÚBLICO e de outros órgãos, para que quem está a escrever uma notícia possa ter acesso a informação relacionada com o tema, contextualizando-o.