Perdeu-se mas encontrou-se

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Ferrnando Medina nasceu num comboio que se perdeu entre Lisboa e o Porto, quando a mãe consultava um álbum de fotografias clandestinas do PCP. Não. Fernando Medina perdeu-se no dia do nascimento do comboio comunista Porto-Lisboa, ao ser fotografado clandestinamente pelo pai. Também não. Nesse caso: Fernando Medina nasceu num álbum de fotografias que se perdeu no comboio Lisboa-Porto e por isso é que ele é um rapaz; se fosse na ligação Porto-Lisboa, ele nascia rapariga?

Chega. Ordem na biografia. Os tempos heróicos do PCP, da clandestinidade na luta contra o fascismo e contra a PIDE, foram um reinado de mensagens em código. Mas não confundamos as coisas. Para confusão, basta lermos os Arquivos Mitrokhin com os segredos de Estado portugueses que Álvaro Cunhal entregou fraternalmente à Rússia do KGB quando isto estava para ser outra coisa.

Esta história é mais simples e clara, e o novo presidente da Câmara Municipal de Lisboa costuma contá-la em entrevistas. Nem toda a gente terá uma memória tão fresca do seu próprio nascimento, é verdade. É preciso uma excelente cabeça logo em bebé. Mas por isso é que Fernando Medina é licenciado em Economia pela Universidade do Porto, mestre em Sociologia Económica no ISEG e doutor em Estudos Benfiquistas no Estádio da Luz, apesar de nascido e criado na Invicta.

No dia 10 de Setembro de 1973, estavam uns capitães a fumar e a tomar café, e a fumar mais e a beber mais café, discutindo pura estratégia político-militar…

— Eh pá, para mim é a 16 de Março, saímos das Caldas e...

— Eh pá, nesse dia não posso, são os anos da minha filha mais nova, pá.

— Eh pá, isso é lá razão, pá?

— Eh pá, vão vocês à frente. Eu só saio depois do bolo. Mas a 25 de Abril é que me dá jeito, posso ir directamente de Santarém para Lisboa, pá.

— Eh pá, e as senhas secretas na rádio, pá?

— Eh pá, eu voto em Sei quem Ele É, que é mais alegre, apetece dançar, seguido de Às Dez Esperarei por Si que faz chorar os corações das mulheres democratas, pá.

— Eh pá, a revolta das Caldas vai correr bem, vai...

— Eh pá, e às dez é muito cedo. Tem de ser mais perto das onze. Voto nessa música nova do E Depois do Adeus, seguido da Grândola. De 24 para 25 de Abril, pá.

— Eh pá, com estas canções não sei se vamos lá, pá.

... quando saiu um pequeno anúncio no jornal O Século: “Perdeu-se um álbum de fotografias no comboio Lisboa-Porto”. Foi com este código que Edgar Correia, então funcionário do PCP na clandestinidade, ficou a saber que era pai. E pai de um menino. Se a viagem do anúncio fosse ao contrário — Porto-Lisboa — queria dizer que era menina. A mãe do bebé Fernando, Helena Medina, dera à luz no Porto, em casa dos pais de Edgar, sem ter tido tempo de chegar à maternidade.

Os dois históricos dirigentes do PCP cumpriram a mais profunda e dramática cartilha dos comunistas portugueses: primeiro as lutas estudantis no Porto, seguindo-se a luta clandestina a fugir da PIDE, com Edgar responsável pelo perigoso território do Alentejo e Algarve. Depois da revolução, o engenheiro Correia implantou as cooperativas de produção e a reforma agrária. Muitos anos depois juntou-se ao famoso grupo da “Renovação Comunista”, que podia ser conhecido como “Expulsão Comunista”, uma vez que acabaram todos expulsos pelo Comité Central por desvios burgueses e esse tipo de linguagem que os estalinistas usam para esmagar companheiros. E numa curiosa, dolorosa e completa reviravolta, Edgar Correia foi de novo empurrado para a clandestinidade política.

É talvez por isso que o filho, se à partida não passa de um burguês sem remédio (um socialista moderado da esquerda do PS, seja lá o que isso for), aprendeu a subir na política com calma e método, sem demasiados estados de alma. Alguém já o viu aos gritos esganiçados? Alguém já ouviu alguém esganiçar-se contra ele? Ponham os vídeos no Youtube que a gente também quer ver.

Com 41 anos, Fernando Medina foi dirigente estudantil contra as propinas, assessor e adjunto de António Guterres nas áreas da Educação, Ciência e Economia, e secretário de Estado do Emprego e Segurança Social de José Sócrates.

Isto é, Fernando Medina assistiu à queda de um mundo fixe em que havia dinheiro, brilho, optimismo, crescimento, a Europa parecia um farol fraterno do mundo. Quando o Gil, mascote da Expo, levantava os braços por estar feliz e não porque suplica por um emprego ou está a ser assaltado à mão armada pelo Fisco, como agora.

A notícia em código destes tempos sairia assim no Século:

“Perdeu-se um álbum de fotografias felizes no comboio da troika entre Lisboa e Bruxelas.” Espera, que porcaria, até o inventor da Lista VIP de contribuintes descodifica isto. Melhor assim:

“Perdeu-se a pouca vergonha toda no comboio entre o Palácio de Belém e o Palácio de S. Bento, as carruagem descarrilaram mas temos os cofres cheios.”

Fernando Medina é agora presidente da Câmara de Lisboa, por passagem de testemunho de António Costa, de ora em diante “apenas” secretário-geral. Costa percebeu que tinha de se despachar se queria ser primeiro-ministro antes do Natal. O PS tenta agora reescrever as senhas em código do que lhe correu muito mal:

“Perdeu-se o comboio do estado de graça num encontro com empresários chineses em que se disse que isto estava muito melhor.”

“Perdeu-se um dirigente calmo quando lhe saltou inopinadamente de trás de um carro uma jornalista da TV.”

E quer evitar, em todas as primeiras páginas de Portugal e do estrangeiro, um anúncio-notícia fatal:

“Perdeu-se uma vitória eleitoral socialista no comboio entre a Praça do Município e o Largo do Rato. Dão-se alvíssaras caso haja dinheiro.”

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