Pobreza e atraso no país mais desigual da União Europeia

Muito mais do que o fantasma da globalização ou a natureza das políticas públicas dos últimos anos, é o atraso económico que explica a brutalidade dos números da pobreza ou a indecência do índice que mede as desigualdades sociais

Na mesma página onde se anunciava um acordo histórico entre patrões e sindicatos para acabar com a discriminação salarial das mulheres no sector da cortiça, o PÚBLICO do passado sábado dava igualmente conta de um despedimento por justa causa de 12 trabalhadores de uma fábrica do Porto. Motivo: tinham participado numa manifestação contra o atraso no pagamento dos seus salários. Os dois acontecimentos dizem muito sobre a pobreza. E oferecem-nos também uma pista para percebermos melhor as causas que fazem de Portugal o país mais desigual da União Europeia a 27. Por muito que nos queiramos impressionar com o sucesso de algumas fileiras da economia portuguesa, ainda que seja motivo de regozijo ouvir José Sócrates perorar sobre o desempenho das empresas com forte pendor tecnológico, as heranças de uma economia arcaica continuam a impor--nos os seus constrangimentos. No caso da cortiça, empresários e sindicatos chegaram a acordo para que num sector no qual Portugal é líder mundial as mulheres passem, em média, a ganhar os mesmos 627,5 euros mensais que os homens já recebem para a mesma função; na história da fábrica de borracha do Porto que, como muitas empresas, luta pela sobrevivência, impôs-se a cultura retrógrada de coacção e medo que ainda domina as preocupações de muitos patrões.
Com um pé na Europa e outro no Terceiro Mundo, Portugal está a caminho da Belíndia, uma invenção dos brasileiros para descreverem o seu país como uma mistura da Bélgica rica com a Índia subdesenvolvida. A imagem é desconfortável, mas plausível. O território da modernidade e do desenvolvimento ganhou espaço na era do crescimento dos anos 80 e 90, mas quase uma década de fraco desempenho económico fez emergir de novo os esqueletos dos quais nos esquecemos ou nos esforçámos por esquecer. O darwinismo económico ditou a falência de dezenas dessas empresas ineficientes e é justo reconhecer que muitos empresários conseguiram milagres na reestruturação das indústrias tradicionais como a têxtil ou a do calçado, mas uma fatia enorme da economia real, baseada na mão-de-obra barata e intensiva e em modelos de gestão caducos, reaparece a cada passo para nos recordar os limites.

Muito mais do que o fantasma da globalização ou a natureza das políticas públicas dos últimos anos, é este atraso económico que explica a brutalidade dos números da pobreza ou a indecência dos índices que medem as desigualdades sociais. O fosso entre o país que se projecta nos fatos caros que os executivos da Boavista, no Porto, ou das avenidas novas de Lisboa vestem e país que resiste nos subúrbios parece ser irremediável. No primeiro, o nível da sofisticação, da exigência e dos salários não difere muito do padrão europeu; no segundo, centenas de milhares de portugueses trabalham em fábricas obsoletas e ineficientes que apenas dão para sobreviver. Por isso, quase metade dos pobres são trabalhadores assalariados, como concluiu um estudo de Bruto dos Santos. Por isso há quase um milhão de portugueses que vive com menos de 10 euros por dia, como mostrou o relatório sobre a situação social na União Europeia. Dizer que Portugal é o país mais desigual da Europa não nos deveria surpreender. Com tantos trabalhadores sem qualificação e tantas empresas caducas e incapazes de abolir modelos de gestão ancorados no passado, seria difícil esperar por mais. O problema mitiga-se com o rendimento mínimo ou com a discriminação positiva das reformas, mas que só se resolverá quando e se o velho Portugal se extinguir e o padrão de uma economia moderna se generalizar. Até lá, essa imagem deprimente da Belíndia, onde o atraso e a tecnologia, a riqueza ostentatória e a pobreza chocante coexistem, continuará a insinuar-se sempre que houver estudos sobre a desigualdade social.

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