Manifesto capitalista

Sempre houve crises no sector bancário e o capitalismo evoluiu. Esta crise não representa o fim do capitalismo americano

Assistimos actualmente a uma crise dos mercados distorcidos e não a uma crise dos mercados livres. Não estão em causa o capitalismo americano nem a falência da economia moderna. Esta crise constitui uma oportunidade para o processo de evolução do capitalismo. 1) Será este o fim da mão visível do Estado? Para a actual situação nenhuma medida se mostrou mais desastrosa que o incentivo da administração americana à compra de imobiliário: deduções das taxas de juro dos empréstimos, taxas de juro reais negativas, isenção do pagamento de impostos sobre os lucros obtidos no mercado imobiliário e desincentivo à poupança. Se o Estado incentiva uma actividade económica deve garantir a utilização sustentada dos recursos públicos.
Não foi isso que o Congresso americano fez no caso de Fannie Mae e Freddie Mac. Em 2005 foram lançados avisos sobre a perigosa descapitalização e a acumulação de empréstimos de alto risco por parte destas instituições. Na prática, o Governo encorajou a compra de casas através de dinheiro barato e de uma inflação alta e assumiu o risco associado a estes empréstimos que devia ser dos bancos. E assim se criou uma bolha.
A Fed deve seguir princípios mais consistentes na definição da taxa de juro e o Governo deve evitar manipular os mercados.
2) Regulação e inovação. A regulação deve respeitar a liberdade económica de cada indivíduo e garantir que os mercados funcionam abertamente. A liberdade implica poder escolher e a escolha deve trazer responsabilidade. Para inovar é necessário assumir riscos e permitir que os investidores possam ser recompensados ou ser mal sucedidos. A solução não passa por mais regulação e a consequente limitação da inovação financeira.
A actual situação é uma oportunidade para reavaliar a regulação existente, nomeadamente Basileia II que pede coordenação internacional mas depois cria regras de gestão do risco que não funcionam. É importante permitir o desenvolvimento do sofisticado sector financeiro que tanto contribuiu para o crescimento económico, para o desenvolvimento da iniciativa privada, para o financiamento de universidades e obras públicas. O valor da inovação é o extraordinário crescimento global que se tem verificado desde que na década de 1970 se reduziu o peso da regulação.
A liberalização financeira por si só não provoca crises sistémicas, mas a intervenção do Estado, através das implícitas garantias de salvamento em caso de uma crise sistémica, estão quase sempre envolvidas no descalabro, como se conclui neste estudo do Quarterly Journal of Economics (1). A crise nos EUA foi só mais um destes casos.
3) Democratização financeira. É fundamental melhorar a democracia financeira para que a inovação e os mercados financeiros promovam uma maior protecção do consumidor. Só com melhor informação financeira e recorrendo a toda a tecnologia de que dispomos é que um maior número de pessoas pode aceder a melhores práticas, produtos e serviços financeiros. É importante informar as pessoas sobre a compra da casa, a concessão de crédito, de seguros de saúde ou planos de reforma. Só assim um segmento da população com menores rendimentos pode aspirar a uma verdadeira democratização do acesso ao sector financeiro.
Conclusão. As crises no sector bancário surgiram, naturalmente, em 1797, 1819, 1837, 1857, 1873, 1893, 1907 e 1933, e o capitalismo evoluiu. A actual crise não representa o fim do capitalismo americano. Os 700 mil milhões de dólares da intervenção americana representam cerca de cinco por cento do seu PIB. O plano de salvação alemão e inglês são de, respectivamente, 15 por cento e 30 por cento do PIB. Quando a maré sobe e dá pela cintura de Gulliver já os liliputianos estão 10 palmos debaixo de água.
A administração americana permitiu que todos tivessem acesso à compra de uma casa. Para que isso fosse possível assumiu o risco associado aos empréstimos concedidos pelas instituições financeiras. Por que razão se culpa o mercado e a falta de regulação pela crise? Tal como dificilmente se encontra um ateu num covil, também agora as pessoas tendem a acreditar em qualquer coisa que as ajude a sair do pânico. Veremos se, com a
pressa, não correm para o lado errado. Economista (faria.lm@gmail.com)
1) Rancière, Tornell e Westermann, 2008, Systemic Crises and Growth, The Quarterly Journal of Economics, MIT Press, vol. 123 (1), pp. 359-406

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