O mundo em quadradinhos

O padrão estranha-se, mas depois entranha-se. Aqui e lá fora, o xadrez preto e branco das camisolas do Boavista é um ingrediente imprescindível na fórmula que define o carisma da equipa. Mas não só. Klimt e a Secessão Vienense, Karpov, Dior, Vieira da Silva, Nova Iorque, Yasser Arafat, os melhores pilotos da Fórmula 1 e umas quantas centenas de paredes e soalhos espalhados pelo mundo são outros tantos devotos dos quadradinhos bicolores. Este é um percurso aleatório com escalas mais ou menos ortodoxas, quadriculadas ou quase, por um mundo de militantes ângulos rectos.

Não foi logo à primeira. Foram precisos trinta anos certinhos para o Boavista atinar com as camisolas "estranhas" que apanharam de surpresa meia dúzia de equipas italianas e a imprensa respectiva. Até optar pelo xadrez preto e branco, o clube do Bessa hesitou entre equipamentos mais ou menos convencionais, do conjunto camisola preta-calção branco que vestiu os primeiros jogadores às listas azuis, vermelhas e brancas das camisas que antecederam o figurino definitivo. O modelo actual foi importado: em 1933, o então presidente do clube, Artur Oliveira Valença, reparou numa equipa francesa que usava uma camisola aos quadradinhos pretos e brancos e decidiu remodelar a imagem boavisteira. O golpe de olho foi certeiro e a moda pegou. Até hoje. Nos dias que correm, o Boavista F.C. - e um punhado de outras equipas que optaram pelas camisolas quadriculadas, substituindo o preto pelo verde, como o Moreirense, ou pelo vermelho, como a jovem selecção da Croácia - é apenas um dos muitos milhares de veículos que servem um padrão clássico com pelo menos 16 séculos de vida. Não há propriamente prateleiras de biblioteca ou antologias de papel bíblia atentas, em regime de exclusividade, à presença do xadrez preto e branco na história universal. A lacuna não permite genealogias definitivas, mas também não constitui obstáculo suficiente a uma panorâmica dos registos mais evidentes. Qualquer esforço de escrita automática começa por lembrar o óbvio tabuleiro que serve o xadrez. Ninguém sabe ao certo a origem do jogo - há quem jure a pés juntos que possui o indesmentível estatuto de jogo intelectual com o passado mais extenso e que já era jogado na Índia 2000 anos antes de Cristo vir ao mundo. Mais fiável é a tese que situa a sua invenção no século V da era cristã: Nicolas Giffaud e Alain Biénabe, autores de "Le Guide des Échecs - Traité Complet", sugerem que o xadrez seja o herdeiro do Chaturanga, um jogo a quatro mãos com os mesmos 64 quadradinhos de cores alternadas que terá nascido na cabeça de um sábio oriental chamado Sissa. A lenda diz que Sissa inventou o xadrez para distrair um monarca neurasténico que viria, mais tarde, a ser vítima de uma insólita partida. Em jeito de agradecimento, o rei deixou o sábio escolher à vontade a merecida recompensa e Sissa desconcertou-o pedindo apenas "um pouco de farinha". Instado a concretizar o capricho, Sissa sugeriu-lhe que enchesse um tabuleiro de xadrez, colocando um grão de farinha na primeira casa, dois no segundo, quatro no terceiro, oito no quarto, e assim sucessivamente, dobrando o número de grãos a cada salto. Ao todo, Sissa extorquia ao espantado monarca 18 quintiliões de grãos, o equivalente a uma França inteira coberta de farinha à altura de um metro. Entretanto, o Chaturanga terá emigrado para o Japão, onde passou a chamar-se Shogi, e para a Pérsia, onde se converteu num divertimento popularíssimo. Foram os árabes que o transplantaram para a Europa, na mesma altura em que decidiram colonizar a Península e polvilhar as línguas ibéricas com uns quantos sufixos inovadores. No século XX, a interminável saga Karpov-Kasparov e o jogo de xadrez com a Morte que entretinha a personagem principal do mítico "O Sétimo Selo", de Ingmar Bergman, ficaram colados à memória colectiva. Mas o xadrez remete inevitavelmente para outras modalidades: a bandeira quadriculada equivale a um suspiro de alívio dos melhores pilotos de Fórmula 1, que a vêem agitada à sua frente no final de cada prova bem sucedida, mas também à desilusão dos veraneantes que anseiam por umas braçadas na altura exacta em que o banheiro foi almoçar e deixou a praia sem vigilância. E é ainda nos brancos das palavras cruzadas que os mais convictos charadistas colocam as suas letras-palpite desde o princípio do século. Como no xadrez, ninguém se atreve a arriscar a data exacta da invenção das palavras cruzadas -crê-se que foi o jornalista inglês Arthur Wynne a publicar pela primeira vez um problema do género nas páginas de um jornal de Nova Iorque, mas é um caso de contestada paternidade. A cidade que nunca dorme é também o cenário para outro tipo de quadriculado preto e branco: os míticos "yellow cabs" de Manhattan exibem uma discreta faixa axadrezada que faz parte do convulsivo trânsito nova-iorquino. E é bem provável que nos assentos cosmopolitas desse meio de transporte se cruzem, algures na Quinta Avenida, um árabe com um "kaffyieh" igualzinho ao de Arafat na cabeça e uma senhora elegante em "tailleur" "pied-de-poule" (um carismático tecido de lã ou algodão cujo padrão alterna pequenos quadrados irregulares pretos e brancos, semelhantes a pés de galinha), acabadinha de sair de uma loja Dior com uns quantos frasquinhos de "Miss Dior" ou "Diorella" pela mão - o estilista francês era um fanático do "pied-de-poule". E que umas horas mais tarde se sentem no mesmo táxi um saudosista das camisas quadriculadas a preto e branco das extintas modas "ska" ou "grunge".O efeito mosaico é igualmente recorrente nos pavimentos de inúmeros edifícios públicos ou de casas-de-banho privadas. Bons exemplos dessa tendência mais ou menos universal são o átrio de química, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, ou o luxuriante Palais Stoclet, em Bruxelas, que Klimt, ao melhor estilo da Secessão Vienense, cobriu de murais cheios de minúsculos quadradinhos pretos e brancos. O pintor austríaco desenhou, aliás, para a sua companheira Emilie Flöge, uma túnica em que o xadrez, as listas e as duas cores mais polarizadas do espectro, imagens de marca dos secessionistas, convivem saudavelmente. Mas também Magritte ("Echec et Mat"), Vasarèly ("Centauri"), Kandinsky ("Scharfruhiges Rosa") ou Vieira da Silva ("O Porto", entre tantos outros) abusaram quanto puderam do motivo. Há quem, como as moscas, veja a vida assim, através de um eterno filtro quadriculado. E de resto, no futebol, a bola não é aos quadrados, mas anda lá perto. A preto e branco.

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