O amor deles ao cinema

A Cinemateca é um lugar onde se sacode a poeira aos filmes antigos, certo? Às vezes, errado. Na 3ª e na 5ª feira, passam duas curtas portuguesas em antestreia: "Cinemaamor", de Jacinto Lucas Pires, e "O Pedido de Emprego", de Pedro Caldas.

Em "Cinemaamor", Bruno Bravo é Gaspar, um improvável empregado de armazém que passa o tempo a citar realizadores ou personagens de filmes. Do género: "No filme 'In a Lonely Place', Nicholas Ray diz, por intermédio de Humphrey Bogart: 'Numa cena de amor não se deve falar de amor. Uma cena de amor deve ser como esta - eu a preparar toranjas e tu aí, meio tocada, meio a dormir." É difícil conter um (sor)riso quando vemos Gaspar responder com doses sucessivas de citações cinéfilas às dúvidas existenciais do seu amigo Joaquim (aliás, António Simão), mas a verdade é que o empregado de armazém é Jacinto Lucas Pires, realizador de "Cinemaamor". Como o são o desajeitado Joaquim ou o "sensível" Sebastião. Há dias, na esplanada de um jardim em Lisboa, a propósito de um mal-entendido, Jacinto Lucas Pires evocava um dos generais de "Dr. Estranhoamor", de Kubrick, intepretado por Sterling Hayden. "O meu amor ao cinema não vem de uma escola prática, como quase toda a gente, mas do meu lado de espectador, cinéfilo, autodidata, que compra livros. Achei que seria importante que isso entrasse no filme, ainda para mais sendo o primeiro, como uma marca de onde é que vem o meu amor pelo cinema", explica. Pelo menos, "Cinemaamor" dispensa as habituais reflexões sobre as referências do autor. Está lá tudo: Godard, Moretti, Hartley, Tarantino, Hitchcock. Ou, nas palavras do próprio, "Hartley lírico, Godard distraído, Moretti apeado e Allen feliz". "Esse era o mapa que eu queria desenhar", diz. "Parece-me importante a ideia de curta-metragem como um começo. Porque permite experimentar conceitos cinematográficos, ideias de cinema de pessoas que estão a começar e que ainda não encontraram a sua ideia e andam à procura."Não há, no entanto, apenas uma ideia em "Cinemaamor". Há uma convergência de influências, tanto mais surpreendente quanto a curta exige uma grande economia narrativa. Vejamos: em 16 minutos, Jacinto Lucas Pires faz com que Joaquim se apaixone por duas mulheres; intercala imagens com intertítulos, à semelhança de Godard, jogando entre as relações de cumplicidade e oposição dos dois; revela uma capacidade invulgar para a contenção de diálogos (ainda para mais, tratando-se de um escritor); oferece belíssimos planos-sequência (das prateleiras de lixívia no supermercado ou das fachadas dos prédios, como Moretti fazia em "Querido Diário"); e completa-os com um inesperado musical nos corredores de um hospital. De resto, a história é simples. Joaquim é um romântico empregado de supermercado em busca da coincidência que revele o verdadeiro amor. Conhece uma mulher (Sylvie Rocha) que o apresenta ao namorado, Sebastião (Manuel Wiborg), um tipo "sensível" que acredita que a poesia pode resolver todos os males. João Bénard da Costa também tem uma breve aparição, como médico."Não é fácil mostrar curtas-metragens fora do circuito dos festivais. Com sorte, e se os distribuidores estiverem interessados, elas vão para as salas. Com um pouco mais de sorte, vão para os festivais estrangeiros". Aparentemente, a sorte bateu à porta de Pedro Caldas, produtor de "Cinemaamor" e realizador de "O Pedido de Emprego": este último, com argumento de Jorge Silva Melo, vai passar em circuito comercial no dia 4 de Fevereiro em complemento a "Rosetta", a obra dos irmãos Dardenne que arrecadou a Palma de Ouro e o Prémio de Interpretação Feminina no último Festival de Cannes. Além disso, estará no Festival de Roterdão. Se "Cinemaamor" é um puro exercício de planificação (e aqui cabe uma menção a Sandro Aguilar, responsável pela montagem), "O Pedido de Emprego" é a quase ausência de montagem, oito minutos filmados num plano contínuo. Uma rapariga, Ana Carla (Sylvie Rocha, de novo), chega a uma fábrica de confecção para uma entrevista de emprego. Mais do que um filme sobre a obtenção ou não do lugar, balança entre a eventual sujeição ou não de Ana a uma entrevista em que a questionam sobre a sua vida privada. "Podia ter feito um filme planificado: filmava uma, filmava a outra, filmava as duas... Mas isso está feito, não é?" A contra-proposta de Pedro Caldas responde à fácil solução do campo/contracampo com uma câmara que evolui de um plano geral da fábrica para um escritório envidraçado onde Ana entra e se senta a uma secretária que, do outro lado, apenas vislumbrada de costas, dispara as perguntas. A meio da entrevista, a câmara, que se detivera em Ana, ensaia um "travelling" para a parede de vidro do escritório, com a conversa em "off", revelando de novo o trabalho das operárias."Queria que houvesse uma realidade muito concreta do trabalho, documental até. Aliás, é engraçado, quando liguei para a Tóbis, uma das pessoas que montou o negativo disse-me: 'Ah, o seu documentário já está pronto.' Eles não ouvem o som, só vêem fotograma a fotograma e pensavam que era um documentário sobre uma fábrica."Não é um documentário, mas também não é pura ficção, até porque a Pedro Caldas interessa-lhe "tirar uma verdade qualquer da mistura entre o artificialismo e a realidade concreta". Os dois encontram-se momentaneamente em "O Pedido de Emprego", mas sempre à distância de um vidro: "Esse vidro, para mim, reforça a ideia da separação: encenação de um lado, documentário do outro".

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