A vida não, os dias

Este primeiro livro de Miguel Castro Caldas tem qualidades indiscutíveis que permitem entrever desde já o perfil de um escritor. Esse escritor está presente desde as primeiras linhas na construção de uma breve história que é feita de muitas histórias, algumas quase só frases incrustradas noutras frases, algumas somente breves retratos, outras fios insistentes, tudo envolvido numa imensa velocidade trituradora (é um livro escrito sem travões), porque a escrita de Miguel Castro Caldas é daquelas que aceleram e só de quando em quando começa a reduzir-se, mas nunca chega à lentidão, fica apenas num processo de desaceleração que logo se recompõe e nos puxa para o clima vertiginoso de carrossel narrativo em que tudo decorre.

Uma nova editora, uma nova colecção: a editora chama-se Ambar, e é a extensão editorial de uma empresa amplamente conhecida. A colecção, com excelente desenho gráfico de Patrícia Proença, é a BAB, isto é, a Biblioteca Ambar de Bolso, e inclui entre os seus primeiros títulos Tabajara Ruas, Jean Echenoz e Saneh Sangsuk, este último com uma narrativa intitulada "Veneno". E devo dizer que descubro este nome com particular prazer, uma vez que conheço "A Sombra Branca", de Saneh Sangsuk, e na altura em que o livro surgiu na sua versão francesa considerei que este quase desconhecido autor tailandês era uma das vozes mais impressionantemente poderosas da ficção contemporânea.Mas falta referir o escritor português incluído nesta primeira selecção. Trata-se de também de um novo nome, Miguel Castro Caldas, que tinha até agora publicado apenas em revistas. O título não é aquilo que eu mais aprecio, devo confessar com toda a franqueza: "Queres Crescer e depois não Cabes na Banheira". Porquê esta minha reserva? Porque se trata daqueles títulos que são uma piscadela de olho para o leitor, uma espécie de certidão de desenvoltura. Bem sei que por este repassa uma certa alusão psicanalítica: a banheira é o espaço maternal onde a mãe dá banho ao filho. Mas mesmo assim preferia um título menos estridente - talvez sejam coisas de geração, admito.Contudo, se faço esta observação preliminar, é porque este primeiro livro de Miguel Castro Caldas tem qualidades indiscutíveis que permitem entrever desde já o perfil de um escritor. Esse escritor está presente desde as primeiras linhas na construção de uma breve história que é feita de muitas histórias, algumas quase só frases incrustradas noutras frases, algumas somente breves retratos, outras fios insistentes, tudo envolvido numa imensa velocidade trituradora (é um livro escrito sem travões), porque a escrita de Miguel Castro Caldas é daquelas que aceleram e só de quando em quando começa a reduzir-se, mas nunca chega à lentidão, fica apenas num processo de desaceleração que logo se recompõe e nos puxa para o clima vertiginoso de carrossel narrativo em que tudo decorre. Embora a presença de António Lobo Antunes seja indiscutível, sobretudo pela atmosfera de vidas menores, coladas a pequenos sonhos de um cor-de-rosa desbotado, patéticas nos seus voos desastrados em que tropeçam nos conspurcados cintos de veludo de um baile de arrabaldes, não podemos deixar de notar algumas diferenças. A primeira tem a ver com o facto de Miguel Castro Caldas estar longe daquela máquina de inscrição narrativa com que Lobo Antunes massacra, e ao mesmo tempo redime, as suas personagens e que tem uma espécie de dimensão impiedosa que vem sobretudo de abstractos modelos musicais. Em Castro Caldas, os registos são mais flexíveis, a implicação pessoal mais evidente, a participação enternecida mais irresistível e o modelo é mais inspirado na oscilação entre o circo e a dança cómica. Mas - como é evidente - Lobo Antunes tem um domínio dos processos que Castro Caldas ainda terá de aprender. O segundo ponto de contacto tem a ver com o modo de inserção de frases que estão no lugar dos diálogos, mas que funcionam sobretudo como temas obsessivos em torno dos quais as personagens se definem e se deslocam, marcadas pela insistência de misteriosas mensagens que as tutelam e em relação às quais se não conseguem libertar.Miguel Castro Caldas diz que o seu livro é uma tentativa de pôr a verdade em papel - ou, se preferirem uma fórmula que tem tradições em pintura, a verdade na literatura. E isso passa através deste livro, sobretudo nas páginas em que a literatura que se escreve consegue trespassar os efeitos de moda insinuante de uma literatura que é mais produzida do que escrita. Há nesta narrativa em forma de caos (em que os sujeitos que intervêm são diversas faces ou idades da mesma personagem, diversos ângulos do mesmo problema, diversas peças do mesmo sonho, diversos habitantes da mesma casa, diversos moradores do mesmo texto) uma manifesta demanda daquilo que constitui o fundo trágico da vida, o lugar de dilaceração, onde tudo se queima e tudo se incendeia, a paisagem da morte, o desencontro estrutural em que a vida se degrada - e isso são os momentos mais intensos de Miguel Castro Caldas. Mas, como ele próprio nos diz na contracapa, aproveita-se como tinta o sangue da ferida deixando no entanto que a verdade fique adiada. E a necessidade de ser leve, móvel, leviano, conduz por vezes à insistência neurótica de uma espécie de humor com que se pretende dar "uma educação social e sentimental no Portugal de hoje". E aqui é o "Nome de Guerra" de Almada Negreiros que nos vem à mente. Sem a mesma lucidez ética que neste predomina.É isso que o protagonista (mas quem fala neste texto senão um pouco de todos nós em cada frase?) nos diz em momentos como este: "No dia em que o meu pai se sentou na minha cama e a sua sombra subiu ao tecto e lançava garras que desciam pela parede, 'eu acredito no futuro, no fim do sofrimento, eu acredito na felicidade', percebi logo a largura de Alfama, labirinto estreito de doidos a morrer de sede encostados à barra do Tejo sem o saberem, formigas desvairadas à procura do buraco e lá em cima os turistas na esplanada das Portas do Sol a assistir ao espectáculo, sumo de laranja e roteiro de Lisboa."E temos aqui um fio vermelho decisivo, uma linha solar que atravessa este livro: o fio de uma escrita da utopia que vem desmentir todas as acrobacias irresponsáveis a que o excesso de desenvoltura conduz. Ela surge admiravelmente expressa no verso de Rui Belo que Miguel Castro Caldas coloca como epígrafe de um dos seus curtos capítulos: "Eu vinha para a vida e dão-me dias." Nesta oposição entre a unicidade de uma "vida" que teria a inteireza das coisas nuas e absolutas e a sucessão incoerente de "dias"encontramos a ferida inextinguível de que nos fala esta narrativa - ou melhor, não fala, ocupa-a para a escrever e escrever-se nos bordos de uma cicatriz adiada. A ideia obsessiva é a de uma espécie de obstinação de existir: "ouvir o milho a crescer" e isto "porque ele nunca pára de crescer", mas dia após dia não o vemos crescer, como tudo o que cresce só vemos depois, quando a imagem se torna retrospectivamente evidente: a vida existe à nossa volta, a vida existe dentro de nós, somos nós que silenciosamente habitamos a vagarosa expansão do mundo, expansão de vida mas expansão de morte, indissolúveis. Escreve Miguel Castro Caldas: "Estava na dúvida se era o milho ou se era ela, se era o milho que eu ouvia crescer, ou se era ela / a morrer / - estou na dúvida, / se era a vida ou se era a morte que eu ouvia, ou se era as duas coisas, por isso quando ela dizia / - não me digas que não ouves / eu só podia responder / - estou na dúvida, / na dúvida se não te oiço é a ti, a dizer adeus sem saberes, um adeus muito lento, acenando tão lentamente que quase não se nota o movimento, mas, se reparares bem, se escutares bem, é possível / ouvir o milho a crescer talvez não o milho mas ela a dizer adeus pensando que não estava a dizer nada mas a ouvir, pensando que era o som do milho a crescer / e vê por mim se o cabelo continua longo, vê por mim se o seu casaco é tão quente que possa protegê-la do frio, vê se ela ainda se lembra de mim, pois em tempos ela foi um amor verdadeiro que eu tive, que não será nos meus dias, os dias que me deram em vez da vida para que eu vinha, mas no seu tempo, minha filha, dizia o taxista numa velocidade sem travões ao longo da hora de ponta de Lisboa, de Este a Oeste, os bandos de homens e mulheres andando por vales e montanhas, mares e rios, Invernos e Verões, vidas e mortes, vê por mim se é o milho a crescer ou é o ir-se embora a vida devagarinho, a vida, não os dias."

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