No meio de tantas notícias e crises em simultâneo, talvez nos tenha passado ao lado uma declaração com peso histórico. Este fim-de-semana, no final de uma visita ao Canadá, o Papa Francisco utilizou pela primeira vez a palavra "genocídio" para se referir aos crimes cometidos contra crianças nativas canadianas em escolas geridas pela Igreja Católica. Vale a pena explicar brevemente o que está em causa, porque é um caso cuja verdadeira gravidade só começou a ser compreendida nos últimos anos.

O que aconteceu no Canadá?

Em causa está a participação activa da Igreja Católica num projecto de assimilação cultural forçada de nativos canadianos. Não se trata de um episódio arrumado no passado remoto da colonização inglesa e francesa do território da América do Norte que corresponde hoje ao Canadá. É algo bastante recente: do final do século XIX até aos anos 1990, o Estado canadiano retirou cerca de 150 mil crianças nativas às suas famílias e colocou-as numa rede de internatos geridos por organizações cristãs (e, maioritariamente, pela Igreja Católica). Ali, as crianças eram obrigadas a trocar as suas línguas nativas pelo inglês ou o francês, e a converterem-se ao cristianismo.

Para além do apagamento da cultura nativa, o internamento forçado de 150 mil crianças teve outras consequências graves: pelo menos 6 mil morreram nas escolas, por doença ou negligência, e há queixas de abusos físicos e sexuais em larga escala.

O número conhecido de vítimas, aliás, vai aumentando de ano para ano, com as investigações que ganharam fôlego no final do século XX, e com a descoberta desde então de sepulturas não identificadas junto a estas antigas escolas. Só em 2021, foram identificadas cerca de 1300 sepulturas sem nome, 215 das quais nos terrenos de uma única escola. São indícios de um número de mortes absolutamente anormal, várias vezes superior às taxas de mortalidade habituais entre crianças no Canadá.

O que é um genocídio e porque é que isto pode ser considerado um genocídio?

Como já falámos nesta newsletter a propósito da guerra na Ucrânia e das acusações que têm sido dirigidas à Rússia, genocídio é o mais grave crime de que um Estado ou indivíduo pode ser acusado, e está definido em termos bastante exactos pela Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948 como qualquer um dos seguintes actos "com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso":

  • Assassinato de membros do grupo
  • Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo
  • Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial
  • Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo
  • Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo

No caso canadiano, pode ser argumentado que a retirada de crianças nativas às suas famílias, com a intenção de apagar a sua cultura e tradições, cabe por si só na definição de genocídio, podendo ainda ser debatido se foi cometido um assassinato em massa ou um atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo. 

No entanto, é importante referir que o Canadá não se encontra oficialmente acusado de genocídio, nem nos seus tribunais, nem por instâncias internacionais, nem o seu Governo (que em 2008 pediu desculpa pelos abusos) refere esse termo.

Há ainda um conceito não jurídico de "genocídio cultural", relativo a este esforço deliberado de apagar a cultura e as tradições das crianças nativas canadianas. É esse termo que usa desde 2015 a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, que tem passado as últimas décadas a investigar o caso.

No último ano, no entanto, o termo "genocídio", sem mais acrescentos, tem sido cada vez mais usado pela imprensa e por líderes nativos devido à descoberta de novas sepulturas.

O que disse o Papa Francisco no Canadá?

O Papa Francisco passou a última semana a desdobrar-se em pedidos de desculpa a representantes dos vários povos nativos do Canadá, que receberam os pedidos de perdão com pouca satisfação, mas as palavras mais importantes foram ditas já no avião, no regresso a Roma, durante o fim-de-semana. Questionado por um jornalista sobre porque não usou a palavra "genocídio" durante as conversas com os líderes nativos canadianos, o Papa disse que só não o fez porque não se lembrou.

"Sim, genocídio é uma palavra técnica, mas não a usei porque não pensei nela, mas descreveria… sim, é um genocídio, sim, sim, claramente. Pode dizer-se que foi um genocídio", disse, listando depois os crimes em causa: "Raptar crianças, mudar a cultura, mudar a mentalidade, mudar as tradições, mudar uma raça, digamos assim, toda uma cultura".

É uma história com H grande que explicamos brevemente nesta newsletter em que tentamos descomplicar as notícias importantes de que ouvimos falar. Voltaremos na próxima segunda-feira para falar de outro assunto. Boa semana.