Queres ser famoso/a?

A Carla queria a toda a força ser famosa. Era o seu sonho de infância (melhor seria dizer pesadelo), e não foi por ter começado a envelhecer que lhe passou a ambição.

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Suganth/Unsplash

Até há bem pouco tempo, sempre que ouvia esta pergunta, lembrava-me de outra: “Queres levar com um pano encharcado na cara?” É-me bastante incompreensível que se apele a quem quer ser famoso sem que essa pessoa tenha uma actividade digna de reconhecimento. Famosos porquê, para quê? Deve haver, sobretudo, um equívoco de quem responde a estes apelos: ser famoso sem motivo não dá dinheiro; até mesmo tendo uma actividade reconhecida, muitas vezes não dá, e nem sequer alimenta o ego por muito tempo. Mas há situações incompreensíveis e desesperadas, que passam despercebidas, e eu, desde que conheci uma destas pessoas que querem a toda a força ser famosas, deixei-me de certezas.

Falemos da Carla, chamemos-lhe assim. A Carla era uma pessoa que, apesar de não ter nenhum talento nem de gostar especialmente de trabalhar, queria ser famosa. A Carla tinha um palminho de cara, verdade seja dita, e um bom corpo, dado que já não era uma miudinha. Ao nível da actividade intelectual, como se percebe, talvez deixasse muito a desejar, mas pronto, a Carla queria a toda a força ser famosa. Era o seu sonho de infância (melhor seria dizer pesadelo), e não foi por ter começado a envelhecer que lhe passou a ambição.

Desde que começou a ser uma mulher info-incluída, a Carla deu o primeiro passo para tentar realizar o seu sonho de ser famosa: alimentou várias páginas nas redes sociais com imagens suas apelativas, por exemplo, fotografias em poses sensuais, com biquínis diminutos, editadas em boas apps devidamente pagas. A Carla trabalhava numa boutique de roupas femininas há mais de vinte anos. Tinha boa apresentação, era solteira, tinha várias amigas e, de vez em quando, um ou outro namorado, nada sério. Só teve uma relação valiosa, de que saiu tão maltratada que nunca mais se quis meter noutra. Mas não era uma mulher ressentida nem traumatizada.

Gostava de ser solteira, dizia sempre que não precisava de homens para nada. Não pagava renda, herdou a casa dos pais, e o que ganhava na boutique chegava-lhe para viver. Estava tudo bem na sua vida, excepto nunca ter conseguido ser famosa. Tentou várias vezes participar em reality shows televisivos. Nunca foi escolhida. Isso, sim, era algo que a magoava. Muito mais do que ser preterida por um homem. Por isso, desde que embarcara nas páginas das redes sociais, ia tendo algum consolo quando os números dos seguidores iam crescendo, embora espaçadamente, e provavelmente espicaçados por uma ou outra fotografia sua mais atrevida.

No outro dia, depois de um jantar com as amigas, provavelmente com vários copos a mais e anos de frustração acumulada, a Carla teve uma ideia. Acreditou piamente que tinha tido a ideia que finalmente a tornaria famosa. Ia fazer um vídeo para postar nas redes. Um vídeo em directo que, estava certa, teria milhões de visualizações. A casa da Carla, deixada pelos pais, como vos disse, e onde viveu desde sempre, ficava num 9.º andar, ali para os lados do Lumiar. A Carla ensaiou na cabeça o filme todo. Era a sua oportunidade de ser famosa a sério, mesmo que não estivesse cá para assistir à fama. Sabia que ia acontecer, desta vez não ia ser preterida, não ia falhar. Estava certa de que o seu vídeo iria passar com destaque em todos os telejornais importantes. Por isso, pôs o telemóvel a registar o live e escancarou a janela do 9.º andar. 

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