Fernando Luís Sampaio: uma arte da contenção que supera toda a reserva

Os poemas de Fernando Luís Sampaio fazem da contenção emocional um fio-de-prumo. Esta é uma poesia do equilíbrio tonal e expressivo, traços que convizinham da entrega destemida ao grande desconhecido que é o “chacal do desejo”.

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Daniel Rocha

Fernando Luís Sampaio estreou-se em 1983, com o livro Conspirador Celeste, a que se seguiriam, quatro anos depois, Hotel Pimodan e Sólon. A partir desse começo pouco separado no tempo, os intervalos passaram a ser mais longos. É assim que só em 2000 o poeta regressava, com Escadas de Incêndio. Em 2005, saía Falsa Partida. O agora publicado Aprender a Cantar na Era do Karaoke — um título irónico, cuja exuberância contrasta fortemente com o registo sóbrio e contido desta poesia — junta àqueles títulos o livro inédito Roubar o Fogo.

A estreia do poeta, que começou por assinar Fernando Luís (nome que manteria até Sólon), revelava uma escrita marcada por uma rara capacidade de dizer de um modo sobremaneira subtil e conciso o que tudo levaria a exprimir por uma demasia da expressão e dos modos discursivos. Pelo contrário, a poesia de Fernando Luís Sampaio encontra na subtileza e no poder de sugestão a raiz profunda da sua força enunciativa.

Quando lhe falamos do espaçamento que foi conhecendo a publicação dos seus livros de poemas, diz-nos: “Os longos hiatos a que se refere foram pausas forçadas pela insatisfação do que ia escrevendo — vale a pena? Isto presta? —, dúvidas naturais de quem ainda tinha (e tem) hesitações sobre a qualidade da escrita.”

Retrocedendo no tempo, revela-nos: “A memória mais recuada do meu contacto com a poesia foi ainda em Moçambique, onde nasci, com a leitura e divisão das orações de Os Lusíadas. Enfadado, e distraído, folheava o compêndio de leitura quando dei de caras com um poema do Ruy Cinatti (‘Água peregrina/ fina flor do vento/tua voz divina/dá-me ainda alento….’) que me deixou fascinado. Aliás, é o único poema que ainda sei de cor!”

Percebe-se neste ponto do seu percurso biográfico um momento de charneira. E é assim que nos dá a saber: “Aquelas palavras levaram-me, curioso, a ler mais coisas dele e de outros poetas de língua portuguesa, nomeadamente o Craveirinha, o Reinaldo Ferreira, a Noémia de Sousa e, um pouco mais tarde, os poetas que colaboraram na revista Caliban. Aos 15/16 anos descobri o Eugénio, o Sena, o Herberto, etc., etc. E comecei a escrever… Até que, aos 21 anos, decidi pôr à prova aquilo que tinha escrito. Foi quando ganhei o Prémio Revelação de Poesia, em 1981, para minha profunda estupefacção.”

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É através de uma janela fechada e não por meio de uma janela aberta, que mais se vê na poesia de Fernando Luís Sampaio. Porque há a carga do não-dito, ou do apenas sugerido, de quanto se insinua nas palavras registadas pelo poema, essa janela cerrada que permite mais ver Daniel Rocha

Da leitura continuada dos seus poemas, ressaltam elementos que se tornam presenças quase obsidiantes na sua escrita. Um deles é a imagem perseguida de gavetas. Estas sugerem a imersão num universo doméstico particularizado numa possibilidade de lugares ocultos, de segredos, peças que não podem nunca encaixar. E o poema passa por todas essas hipóteses como se as farejasse e lhes movesse caça.

Mas há ainda, e sobretudo, o mar e todas as suas declinações. Embarques, sugestões de marinhagem, paisagens marcadas por aquele imenso elemento natural — “O persistente inverno perdeu/ a ilusão tornou-se estrada/ de todo o náufrago.// Hei-de morrer sentado longe/ da temerosa frota de amigos.” (p.41) Conforme nos diz: “Nasci num país onde a natureza é exuberante e quase nos invade a infância. A presença desses elementos justifica-se, certamente, por fazerem parte da minha paisagem mental e vivencial. A reminiscência de rios, lagos, areais infinitos, cheiros, os muitos céus que vi, são ainda a minha gramática do mundo, apesar de hoje em dia ser um convicto urbano. Mas são elementos importantes que me religam à memória do corpo que, como sabemos, é o instrumento empírico para o conhecimento de si e, com alguma pretensão, do mundo. E esse mundo dos elementos permanecerá sempre em mim. Para citar Biedma, são também ‘o argumento da obra’.”

A poesia de Fernando Luís Sampaio é muitas vezes um facto da escrita em que concreto e abstracto lutam entre si por uma corrupção daquilo que seja linear e previsível, certa placidez de construção e conseguimento — “Levar a cabo os lastros indecisos, abreviá-los,/ a carícia sobre as redes quando deixam/ entrever o rosto, e as águas, o rascunho dele,/ crispando no enfiamento da memória.” (p.12) E, no entanto, a serenidade da imagem, aquela mesmo que se estende a todo o funcionamento do poema, é plenamente capaz de traduzir o tumulto através de uma língua de chegada plena de harmonias e contrastes. Ou seja, de certa forma, recapitular a herança wordsworthiana da “emoção recordada em tranquilidade”. Note-se, por exemplo, que um sentimento como a melancolia é sempre filtrado para que o seu lastro não sufoque os versos, que, pelo contrário, apresentam um notável tónus. Uma capacidade que permite pôr em evidência, sem qualquer sombra de excesso, “a indecifrável respiração da derrota” (p.223).

Os poemas são frequentemente lacunares, produzem estados apenas sugeridos e afirmam-se não raro através de uma expressão subentendida. O que não os impede de manter um espaço vital afirmativo, onde pode acontecer o logro, a “falsa partida” de que fala o título de um dos seus livros aqui reunidos — “Desgrenhado e lento/ o olhar não/ disseste nunca este dilema/ celeste, as efémeras frases que mudam/ o mundo.” (p.26) Os próprios títulos dos poemas, ou a ausência deles, marcam esses espaços em branco que a poesia de Sampaio vai disseminando de forma tão hábil quanto discreta.

“Os títulos são sempre um dilema para mim. Por isso, muitos dos poemas vão sem título, porque eu próprio não sei se muitas vezes eles não limitam a leitura do poema, ou porque, simplesmente, funcionam melhor assim.”

Não raro, os títulos sugerem uma errância no espaço que se propaga para o poema. A presença de expressões e palavras em inglês, ou a recuperação de nomes de lugares mais ou menos distantes, devem ser entendidos como índices de cosmopolitismo — aspecto que antecipa uma escrita como a de Rui Pires Cabral. Eis aquilo a que um poema de Fernando Luís Sampaio chama “transumância das línguas” (p.138). Ou, nas palavras do autor: “Noutros casos, quando os há, o título remete para lugares, sentimentos, pessoas ou implicam reenvios para leituras, filmes, pinturas, fragmentos de histórias, etc. Mesmo quando isso acontece, tendo a obscurecer a fonte ou, no caso do poema Um Ano Depois [poema chamado à colação durante a entrevista], ao tornar explícita a colagem a um poema da Luiza Neto Jorge, poeta que muito admiro e que ainda me perturba, a intenção foi a de a homenagear. Intertextualidades, dizia-se.”

Quando lhe falamos do poema O Último do Verão, com a sua sugestão camoniana — “No mais, toda a beleza cansa/ com a imperfeição do tempo/ que fecha o horizonte,/ a tua mão cadente,/ os teus lábios/que riscam a intempérie do verão.” —, diz-nos: “Refere o piscar de olho a Camões, mas é natural que quem escreva nesta língua não tenha passado pela sua lírica e fique, para sempre, lá preso. Esse reenvio pode ser entendido como a ininterrupta consanguinidade entre o passado e o presente que a língua consegue preservar. Humilde homenagem, claro, mas venerada. É neste contexto que a vassalagem do sangue no poema Apartamento deve ser lida, como a chama olímpica que é transportada de mão em mão para que ela não se extinga e chegue a um destino que, espero, seja ainda longínquo. Esta vassalagem, contrariamente ao peso cultural e histórico que ela transporta, tem a ver com o vínculo à vida e à vocação prometeica que todo o poema tende a celebrar e resgatar.

A arte da transição, através do ritmo e dos encavalgamentos, gera efeitos de sobressalto e produz antinomias proveitosas para os descaminhos que o poema sempre procura, ou a que não pode fugir — “Irei ao espelho do meu rosto/ corrigir pequenos desgastes./ Uns traços de ouro nas pálpebras/ podem trazer a sedução.” (p.27) Há saltos no poema, espaços que se percorrem no verso, ou na transposição de um para o outro, que sucedem em lapsos que enganam o olhar, o ouvido. Sem que nada se resuma a uma simples ilusão de óptica, existe aqui um manejo quase secreto que roda tudo para que nada seja uma afirmação da banalidade, mas um confronto do que ainda não se suspeita. Há expectativas não cumpridas, confortos que não chegam a instalar-se, e ler estes versos é como estar desabrigado. A epígrafe de Hotel Pimodam ia buscar a Baudelaire uma imagem carregada de uma força imagética que ajuda a perceber estas tensões. É através de uma janela fechada, segundo aquela citação, e não por meio de uma janela aberta, que mais se vê. Porque há, acrescentaríamos, a carga do não-dito, ou do apenas sugerido, de quanto se insinua nas palavras registadas pelo poema, essa janela cerrada que permite mais ver. E é de uma certa capacidade de não dizer tudo que aqui se trata — “Voltar a ver-te, vou dizer/ poucas palavras, estas mãos/ indo para não sei onde/ murmuram gestos sem recado,/ tantos segredos se perdendo então.” (p.62) Muitos destes versos movem uma poderosa quebra de confiança no que poderia esperar-se do poema — “Apenas a cidade, cimento sobre cimento/ sobre nada a dizer.” (p.114) O poema  recusa-se a seguir pelo caminho mais seguro, e muito menos submisso. De modo não muito diferente, certas referências pop espicaçam os poemas sem fazerem dele essa demasia expositiva, ou imitação servil que fere de morte os versos — “Andei toda a noite de rua em rua/ à procura de nada levava o iPod/ para ouvir rufus até perceber/ que por ti o coração entra em loop,/ um pouco mais amargo ia deixando atrás de mim/ a orla vã do futuro o rio de uma só margem” (p.188)

Quando estes poemas escolhem um predador, visam um espécime particular. O “chacal do desejo” (p.106) captura essa noção fugidia de uma perseguição impiedosa, sem regras nem diplomacias. Mais ainda que o lobo, o chacal representa, sob a força da metáfora, um mundo de valas e caminhos desfeitos — o do amante fustigado pelo veneno do desejo. Uma outra figuração do “mercenário do desejo” (p.126). O diálogo que se insinua nos versos é escaramuça e tão raras vezes assoma neles a bandeira branca da rendição, ou o processo de paz se desenrola — “Voltaste, disse eu, não voltei,/ disseste, o land rover por/ aquelas estradas era a metáfora/ mais visível do nosso desencronto.” (p.121) Há um “eu” e um “tu” que habitam provisoriamente o termo exíguo e metrificado do verso, terreno minado, superfície farpada. Qualquer um quer chegar sobrevivo ao fim dessa noite cerrada que uma estrofe nunca deixa de ser. Não lhes importam sequelas e escoriações, mas fruir ou sofrer o percurso. Mas nem aí, ao fundo do túnel, como é obvio, pode haver lenitivo, nem permanência. E tantos versos reiteram essa condição. Um dos mais desassombrados é aquele que diz: “És tão difícil, ruína.” (p.126) Esta poesia é exímia a reconstruir essas possibilidades de colóquio através do que resta de uma memória, poderosa imaginação ou nada. Porque as duas pessoas gramaticais que nestes versos criam as suas pautas nunca chegam a tornar-se obviedades ou simples narrativas de si mesmas — “Cada um em seu hemisfério preso/ a fios de conversa fiada/ pela rasurante luz da razão. Deitados// sob o barulho da chuva à uma da manhã,/ ecrã sonoro que promete mais punhais.” (p.175) Porque as investidas desta poesia nunca deixam de ser possibilidades de investigação ética. “Esse tom meditativo”, como esclarece o autor, “acentua-se mais em alguns poemas do que na maioria do que escrevo. Creio que toda a poesia, seja ela mais metonímica ou gnómica, parte de um pendor meditativo ( Emily Dickinson, Celan, por exemplo) que se organiza de vários modos. Muitas vezes, é o próprio poema que me arrasta para esse registo, por um imperativo que desconheço, pois acredito que o poema se pensa e nos pensa no seu fluxo orgânico — a escolha da palavra, o ritmo, etc.

A esta poesia, parece interessar o que é possível ver nas escórias daquilo que ardeu um dia. Interpretar, dar sentido, razão e valor ao que é voo, fuga e fragmento — “Com a chuva desfocada do verão/sentávamo-nos a ler romances,/ cada um em seu devaneio, a longa/ palmeira do Illinois, Boys from red clouds,/ Ohio, tu a medir distâncias entre desejados” (p.134) —; testar a sua natureza, perscrutar a sua verdade, o seu bem e o seu mal — “sentados numa confortável dúvida, fomos/ o epicentro porque os factos/ são as palavras e as palavras/ a verdade desse avental no Mojave” (id.). Não será, afinal, de uma ética do erótico que aqui se trata?

No poema Ida Davidsen, escreve Fernando Luís Sampaio: “A palavra nunca foi uma arma.” (p.199) Quando lhe perguntamos se aquele verso constituiria um momento de ironia ou se, pelo contrário, correspondia a uma crença, responde-nos o poeta: “A palavra já foi uma arma, mas não nos tempos que correm. Ela está de tal modo degradada, corrompida, que são mais veículo de destruição do que de exaltação, graças ao predomínio massivo das chamadas redes sociais e do uso que certos políticos miseráveis fazem delas. Contudo, acredito que a palavra ainda é o único instrumento que temos para reconfigurar o nosso pensamento e, logo, a nossa realidade. Não me refiro à palavra com poderes xamânicos, como creio terem sido as palavras de ordem de um certo tempo histórico, mas às que ainda nos podem ajudar na humanidade que ainda nos resta. A descrença nas palavras colecivas (palavras de ordem) levaram-nos a lado nenhum — ou, melhor, a paragens que ficaram a meio caminho do que se queria. Daí a ironia amarga do poema Luta de Classes [“Nada permanece desses anos inquietos/ deixados à porta da idade como sacos/ vazios, testemunho que reclama amizades/ e mortes.” (p.216)], que se resume a um bilhete de autocarro a marcar a página de um romance que se leu. Acreditei, como milhares e milhares de pessoas, que um grito uníssono (e grandiloquente!) pudesse alterar o rumo das nossas vidas. A vida alterou-se, sim, mas por defeito, para usar uma expressão da informática. Os “tempos são duros” [p.214, poema Como é a tua canção], sim, e basta olhar para as questões com que a Europa se defronta, e, sobretudo, para os milhares de cadáveres calados pelas outrora águas cálidas do mediterrâneo. Isso basta, para não saltarmos para outras latitudes.

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