Mochilas escolares: uma petição, uma ilusão

O facto de existirem muitas crianças com alterações posturais não resulta necessariamente do transporte de pastas pesadas

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Foi criada recentemente uma petição "contra o peso excessivo das mochilas escolares em Portugal" que, sendo aparentemente meritória, vem abonar à já muito cirandada ignorância sobre o tema das dores e deformidades posturais em crianças e adolescentes.

O texto introdutório da petição alude, inclusive, a um estudo, intitulado "Transporte de cargas em populações jovens: implicações posturais decorrentes da utilização de sacos escolares", e que pode ser consultado aqui, que é todo ele erro crasso de metodologia, incluindo a adução de uma relação de causa-efeito a partir de uma mera correlação. Ora, o facto de existirem muitas crianças com alterações posturais não resulta necessariamente do transporte de pastas pesadas, no máximo este seria um mero catalisador de deformações cuja origem é muitas vezes resumida ao termo "idiopático". A causalidade "primária" ou "idiopática" encapota, deveras, uma pluralidade de possibilidades, e, possivelmente, uma matriz de factores de risco, mas mesmo estes não são de tratamento unânime por parte dos diferentes profissionais de saúde: onde o médico divisa uma causa congénita, o terapeuta vê frequentemente uma causa "desenvolvimental", onde o primeiro enxerga o resultado de uma fraqueza muscular, o segundo avista possivelmente um excesso, senão um desequilíbrio muscular, etc.

A mesma ambiguidade nas perspectivas ocorre no que respeita às dores da coluna (raquialgias), também referidas no texto da petição. Quase sempre o médico tenta buscar uma causa específica para a sintomatologia, quando o terapeuta prefere muitas vezes obviar um conjunto de factores contributivos para uma experiência que é fortemente subjectiva (refiro-me à "dor"). A cada um o seu paradigma, ou condicionamento, que é também uma base de trabalho. Mesmo quando está presente uma alteração postural, esta pode não causar as dores em causa. Para mais, é frequente encontrar escolioses e hiperlordoses assintomáticas entre os jovens.

No estudo que publiquei na Revista Portuguesa de Saúde Pública, intitulado "Lombalgia nos adolescentes: identificação de factores de risco psicossociais. Estudo epidemiológico na grande Lisboa", investigámos 208 adolescentes com idades compreendidas entre os 11 e os 15 anos, dos quais, 39,4% referiram ter dores no ano anterior ao momento de resposta ao questionário. Inicialmente encontrámos uma relação entre a presença de dor e a "ausência de actividade física", o "tempo gasto em jogos electrónicos", e uma série de outros indicadores de sedentarismo. No entanto, uma análise estatística mais complexa permitiu perceber que algumas das relações encontradas podiam estar associadas a outra variável que também foi medida, o "auto-conceito". Inferindo, em muitos casos pode ser difícil entender, por exemplo, se a dor "lombar" existe ou é maior porque há mais sedentarismo ou porque subsiste uma percepção alterada da mesma afecta a variáveis psicológicas que, não por acaso, têm maior expressão nos mais sedentários.

Um estudo dos mesmos autores com estas mesmas crianças, publicado na revista "Re(habilitar)", viria dar relevo a uma série de factores de risco "físicos", que podem ter uma relação muito intrincada entre si, e com os já aludidos, psicossociais. Já em 2009, publiquei na "Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia" (volume 17), um estudo relativo aos mesmos factores físicos, em que obtivemos um valor de 20,5% de crianças com referência de dor, e associações entre esta e a maior idade, a altura, o peso e certas variáveis antropométricas.

Em boa verdade, são inúmeros os estudos que estabelecem a ligação entre a dor da coluna nas crianças e uma série enorme de variáveis, das quais o "transporte de mochilas" não revela a importância que a Comunicação Social tantas vezes lhe atribui. Factores como a idade, o peso, a altura, os hábitos sedentários e as variáveis psicológicas actuam numa relação complexa, contribuindo para uma sintomatologia (e para as deformidades, que, por sua vez, afectam - e são afectadas - as/pelas variáveis psicossociais) que, muitas vezes, não chega a ter grande expressão no futuro. Resumir um problema que é da ordem do multifactorial, psicossocial, a uma mera questão do peso das mochilas é querer tapar o sol com a peneira (se bem que o peso citado se correlaciona com questões prementes de ordem "pedagógica" e relativas à vida dos estudantes, também relacionáveis com todos os factores psico-físicos já aludidos). Assim, mais grave que as mochilas pesarem muito é o facto de o indivíduo não possuir frequentemente uma estrutura física e/ou psicológica que ajude a sustentar o peso das ditas. Não nos limitemos a encarar o peso das pastas, encaremos também a relação entre o peso do meio, da sociedade, e o "peso" idiossincrático do jovem (que, de resto, depende, primitivamente, do meio e cultura). Não coloquemos as culpas num agente preciso, quando tanto mais no "ser", psico-físico e social, possui tamanha ponderação. O que há a mudar é toda uma dinâmica, físico-psicossocial, caso a caso.

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