Opinião

Depois de se contarem os mortos

1. Ainda se contam os mortos. Em Paris e em Bamaco, capital do Mali. Foi fácil a Bernard Cazeneuve, o ministro do Interior francês, obter tudo aquilo que pediu aos seus parceiros europeus. Muita coisa já devia ter sido feita, como o PNR (o registo dos nomes dos passageiros dos voos dentro do espaço europeu, que continua à espera do Parlamento Europeu) ou uma atitude mais decidida para reformar Schengen à luz do mundo em que vivemos, como escreve a Economist, em vez de erguer fronteiras à medida de interesses nacionais e arbitrários para lidar com a vaga de refugiados. Não é só uma questão de tempo. É também uma questão de perspectiva. A Europa prepara-se sempre para a última crise que teve de enfrentar sem preparação, com uma imensa dificuldade em antecipar a seguinte. A reforma de Schengen vai agora ser feita, com uma proposta global da Comissão até ao final do ano. As fronteiras externas da União vão ser reforçadas, mesmo que isso implique longas filas de cidadãos europeus nos aeroportos da Europa. A cooperação dos serviços de informações talvez melhore. Mas não certamente com a proposta da Comissão para criar um serviço de informações europeu que nunca funcionaria. Os serviços secretos dificilmente se libertam da tradição, tendem a desconfiar uns dos outros. Uma maior cooperação exige anos. Mas Paris também demonstrou que, se não houver coordenação, há sempre a possibilidade de ceder pelo elo mais fraco, como se viu agora na Bélgica.

Também o ministro da Defesa francês obteve há três dias o apoio unânime dos seus pares quando accionou o artigo 42.7 do Tratado de Lisboa, sobre a obrigação de solidariedade europeia em caso de ataque a um dos seus membros, “com todos os meios necessários”. Esta espécie de Artº 5º da União tem a vantagem de não envolver apenas o apoio militar como seria no caso da NATO. Como o próprio ministro francês disse, foi sobretudo um acto politico para testar a solidariedade europeia e a consciência de que se trata de uma ameaça comum, perante a qual ninguém está a salvo.

2. Uma guerra? Esta é a segunda grande questão que os europeus vão ter de enfrentar. O Presidente francês utilizou desde o primeiro instante a palavra “guerra” (como George W em 2001). Trata-se de uma guerra assimétrica, mas a palavra não deixa de ter uma conotação forte e clara. Hollande quis utilizá-la porque era preciso dar aos franceses um sentimento de confiança e coesão. Mas foi mais longe: traduziu-a na intensificação dos bombardeamentos ao Estado Islâmico na Síria. Até agora, ainda nenhum líder europeu recorreu à mesma palavra. O debate terá de ser feito tendo em conta a natureza peculiar do Estado Islâmico, cuja organização assenta num território (Estado), que pretende alargar até à reconstituição do Califado. A pergunta seguinte é sobre a eficácia. Muitos analistas consideram que esta forma de ataque não será eficaz porque o caos em que está mergulhado o Médio Oriente é favorável ao alargamento da sua implantação. Além disso, é difícil imaginar que o Presidente Obama vá alterar a sua estratégia de combate ao Estado Islâmico, que recusa “botas no terreno” e privilegia uma negociação diplomática (que começou em Viena, na véspera dos atentados).

O factor novo que Hollande quer trazer ao combate é a Rússia. Tem uma justificação: a influência de Moscovo junto do regime de Damasco, que Putin tem apoiado abertamente. A França argumenta que o reconhecimento de que o avião russo cheio de turistas foi abatido por uma bomba do EI pode levar Putin a pensar duas vezes. Terá de decidir de uma vez por todas se quer sair do isolamento internacional em que se encontra por causa da Ucrânia para alinhar com o Ocidente contra um grupo terrorista que também o ameaça. A questão não é simples. Obama mantém a sua posição inicial: Assad tem de sair, mesmo que não seja já. Terá de haver condições para a Rússia fazer parte da “grande coligação” que Hollande quer criar.

3. Antes de ir a Moscovo e depois de visitar Obama, Hollande receberá a chanceler no Eliseu na quarta-feira. Será um encontro fundamental, porque, para bem da Europa, a Alemanha não pode ficar de fora deste desafio tremendo às democracias europeias, que não desaparecerá nos próximos tempos. Merkel tem estado em silêncio. Não regateou apoio a Hollande nos atentados de Janeiro contra o Charlie Hebdo. Agora, limitou-se a dizer que “a Alemanha está a chorar pela França”. Para ela, que já enfrentava uma enorme pressão interna por causa dos refugiados, esta é uma questão difícil. Sabe que não pode dar a resposta errada. Os alemães acreditavam que estavam protegidos do terrorismo porque se opuseram à invasão do Iraque em 2003, se distanciaram da guerra na Líbia; e porque a sua participação na missão da NATO no Afeganistão foi sobretudo defensiva. A sua comunidade muçulmana é essencialmente turca e os turcos “são os alemães do Médio Oriente”, segundo a fórmula de um velho embaixador americano, sem os problemas dos banlieues de Paris. Esqueceram-se que foi de Hamburgo que partiu a célula da Al-Qaeda para executar o 11 de Setembro. Merkel liderou a resposta diplomática à Rússia na Ucrânia. Mostrou-se firme contra uma ameaça real à segurança europeia. E voltou a mostrar coragem política (coisa que parecia não encaixar no seu perfil) quando abriu a Alemanha aos refugiados, merecendo fortes críticas internas. Percebe que a Europa não pode mais ignorar os conflitos nas suas fronteiras, a Leste e a Sul. Mas ainda não sabe como. Jan Tachau do Carnegie Europe é bastante pessimista quanto à capacidade de a Europa se unir para enfrentar este flagelo. “Há falta de recursos, falta de vontade política e falta de apoio público.” E, sem a liderança americana, qualquer intervenção no Médio Oriente é impossível. E depois, como lembra a Economist, “a Europa está a tentar lidar ao mesmo tempo com a ameaça terrorista e com um gigantesco fluxo dos imigrantes”. Somadas, as duas coisas “serão uma bênção para o ressurgimento da extrema-direita”. É isso que Hollande também tem em conta. Teve o mérito de separar imediatamente as duas crises, reafirmando o compromisso francês de receber 30 mil refugiados. “Foi desesperadamente hábil, cortou a relva debaixo dos nossos pés”, disse à AFP um dirigente dos Republicanos de Nicolas Sarkozy. O pesadelo de Hollande (e da Europa) é a Frente Nacional de Marine Le Pen. A Europa está a enfrentar uma sucessão de crises, do euro, dos refugiados, da economia, do terrorismo e da instabilidade junto das suas fronteiras. Terá agora de rever prioridades. A segurança vai subir na agenda, as regras da união monetária vão ficar sob pressão. Hollande não esperou para declarar a sua intenção de ignorar o défice. “O Pacto de Segurança é mais importante do que o Pacto de Estabilidade”. Mesmo que seja evidente a sua afirmação, vai ter de discuti-la com Berlim. Mais um dissabor para Merkel e mais um teste à sua liderança.