Somos os filhos da madrugada

Domingos nasceu 15 dias antes do 25 de Abril. Jwana nasceu pouco depois, no Canadá. Fazem este ano 40 anos, como a revolução. As suas histórias são (também) a história do país democrático.

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Jwana licenciou-se em Gestão de Empresas, esteve sempre ligada à música. Trabalha desde 2007 na Música no Coração, é responsável pela contratação de muitos dos artistas que passam por festivais em Portugal. Domingos completou um mestrado em cinema na London Film School, e mais tarde fez uma formação em Gestão. É co-Fundador da Live Content, uma agência de publicidade digital, especializada na gestão de redes sociais, que está em Portugal, Brasil e México. É mentor na Start Up Lisboa e Business Angel e em algumas empresas em que acredita.

Outros dados importantes: Domingos nunca perdeu uma Festa do Avante!, e trabalhou em quase todas (quase sempre como tradutor). Jwana faz de uma canção de Zeca Afonso uma canção de embalar. São talvez mais politizados do que as pessoas da sua geração. Descem a Avenida da Liberdade no 25 de Abril. A filha mais velha, Margarida, é espirituosa (Vendo um sem abrigo, diz: “A culpa é do Governo.”) Francisco é sonhador e doce. António tem a curiosidade e a alegria intacta de uma criança de dois anos e meio. Pode ser que daqui a 40 anos eles leiam o que os pais disseram deles e de si próprios.

Comecemos pelos vossos nomes, que já dizem muito de quem são.
Jwana — Jwana Charlesworth Godinho. O W do meu nome foi uma escolha fonética para que eu, que nasci no Canadá, fosse chamada de “Joana” e não “Johanna”. Descobri na geração do Facebook que há imensas Jwanas no Médio Oriente, na África do Sul e na Tanzânia. Na minha infância, achei que era única no mundo. [riso] Charlesworth, nome canadiano de origem inglesa, da minha mãe [Sheila], que é canadiana. Godinho é do meu querido pai [Sérgio], cantor, músico, pai.
Domingos — Domingos é uma homenagem ao meu padrinho, Domingos Abrantes. A minha madrinha é a Conceição Matos, a mulher do Domingos Abrantes.

Dois resistentes antifascistas.
Domingos — Exacto. É estranho ter padrinhos quando se é ateu. Mas, apesar de serem comunistas e ateus, havia entre os meus pais e os meus padrinhos uma relação muito forte. 

Não existindo vínculo religioso, o padrinho é aquele que toma conta no caso de ausência dos pais.
Jwana — Eu não sou católica, tenho padrinhos porque tenho. É uma relação formal. A relação do Domingos com os padrinhos é [diferente]. Um padrinho é um mentor. Tu tens uma responsabilidade para com eles como eles têm para contigo.
Domingos — Os meus padrinhos são uma fonte de inspiração. Viveram com dificuldades, muito cedo entregaram-se à luta na clandestinidade. O meu padrinho esteve mais de dez anos preso, a minha madrinha esteve quase seis. No entanto, mantêm uma chama, uma alegria de viver, um amor entre os dois fortíssimo.

Era a alegria e a coragem dos seus padrinhos, mais do que tudo, que os seus pais estimavam? Era a isso que queriam prestar homenagem escolhendo-os como padrinhos?
Domingos — O Partido Comunista estava cheio, e está cheio, de personagens como os meus padrinhos. Heróis de todos os dias da luta antifascista. Desde criança ouvi isto: “Foram presos, foram torturados, nunca falaram.” Quem é que resistia?, quem é que não resistia? A maior parte dos [militantes] comunistas resistia. Perguntava-me se teria essa coragem se alguma vez me acontecesse [ser preso e torturado]. “Estas pessoas tiveram tanta coragem... a minha obrigação é ser tão forte e tão duro e tão valente como eles.” Levo isso ao longo da vida. Os meus pais também são um exemplo incrível de coragem, e outras pessoas que conheço.

O que é que o Domingos tem destes pais e destes padrinhos?
Jwana — Integridade. Coerência. A entrega aos outros. Ele faz disso uma missão. E alimenta-se disso.
Domingos — Tenho do lado da minha mãe outro exemplo de coragem. O meu avô materno com 15 anos pegou numa fábrica que tinha sido da família, de doces, e construiu a maior conserveira de Portugal. Construiu uma marca como o Bom Petisco, o Ramirez. Foi quase um self made man. Nunca foi politizado. Votava PS.
Jwana — A sério?! Mas eu não sabia isso.

Os empresários eram de direita.
Jwana — Era uma família muito tradicional, católica. Nunca imaginei que o teu avô fosse de esquerda.
Domingos — Ele nem era católico. Ia à procissão dos pescadores porque tinha um respeito enorme pelos pescadores. O meu avô tem fama de ter sido o primeiro empresário em Portugal a ter uma creche na fábrica. Portanto, era humanista. A fábrica era em Vila Real de Santo António, ele tinha casa em Montegordo e dava boleia, todos os dias, à malta da fábrica. Carregados de peixe. E ia pela vila a dizer adeus a toda a gente. Lembro-me de ir com ele e ver isto.

A sua mãe era de uma família abastada e apaixonou-se por um comunista. Não era comum.
Domingos — A minha mãe foi educada num colégio de freiras. Era fervorosamente religiosa. Acho que estava à procura de qualquer coisa. Quando saiu, percebeu que a motivava a dedicação ao próximo, o sofrimento dos outros. Essa foi a força motriz que a levou para o PC. Logo a seguir ao 25 de Abril, tornou-se funcionária do partido, full time. E depois, dentro do partido, foi para o Avante!.

Não foi a paixão pelo seu pai que a levou para o PC?
Domingos — Não. A minha mãe foi lá parar sozinha. Eles encontraram-se na luta, num encontro do sindicato dos bancários. O meu pai foi um dos fundadores da CGTP. Antero Martins Pinto Guimarães. Era o Antero. Não há muitos Anteros.

A Jwana tem também dois lados diferentes e marcantes. Qual é a primeira recordação que tem de si, pequenina, filha de uma estrangeiro e de uma figura pública?
Jwana — O facto de a minha mãe ser estrangeira e falar inglês comigo era uma coisa de que não tinha consciência. Cresceu comigo, faz parte de mim. Só na adolescência, quando achei que era cool falar inglês — típica atitude adolescente —, é que me apercebi de que era filha de uma estrangeira. Só então comecei a pensar nas implicações que isso teve na minha vida. Eu passava Natais no Canadá, era um lado exótico...

Quanto tempo viveu no Canadá?
Jwana — Dois meses. Nasci em Julho. Viveram no Canadá, em Amesterdão, no Brasil, em Paris. Não tinham um poiso fixo.

Conheceram-se no musical Hair, onde ambos participavam.
Jwana — Sim. A minha mãe saiu do Canadá com 18 anos. Era de uma família de classe média, vivia em Montreal, no Quebec. Era rebelde, ia a concertos. Viu os Beatles!, coisa mítica. Foi para a Jamaica e depois para a Europa. O meu pai foi estudar para a Suíça, andou pela Europa. Estavam ambos em Paris e eram actores do Hair — o auge do movimento hippie — quando se conheceram. A minha mãe era muito bonita, a encarnação da estrangeira, loira. O meu pai era o europeu intelectual, com charme, cultura. Estiveram os dois presos no Brasil no início dos anos [19]70 por uma questão política (trabalhavam com o Living Theatre e foram para o Brasil numa altura em que não podiam fazer aquele tipo de teatro, e muito menos em fábricas).

Como é que foi nascer ao Canadá?
Jwana — Por acaso viviam em Vancôver, onde eu nunca voltei. Viviam numa comunidade quando nasci. E atravessaram o Canadá com uma carrinha que tinha um nome: Munpf. Era um som. Acho que a minha mãe nunca deixou de viver em comunidade... Quando viemos para Portugal vivíamos sempre partilhando casas, e com amigos e com amigos menos amigos.

O que é que a Jwana ainda tem da vivência hippie dos pais?
Jwana — Para além de ser desarrumada... [riso]
Domingos — Tem várias coisas dessa herança hippie: uma capacidade de análise muito livre. É muito despida de preconceitos. Identificamo-nos muito nas grandes questões. Eu vivi muito mal com o facto de o aborto ser ilegal em Portugal. Casamento gay? Não há discussão. A sociedade vai muito atrás da realidade.

Estou a perguntar detalhadamente pelos vossos alicerces e pelas histórias dos vossos pais porque vimos sempre de um lugar. Muitas vezes replicamos de modo acrítico o que vivemos. Outras vezes, reagimos violentamente contra os nossos pais e os seus modos de viver. Para entender quem são aos 40 anos, é preciso perceber como é que eram os vossos pais e como é que eles viveram, nomeadamente o 25 de Abril.
Domingos — A minha mãe diz que eu fui o arauto da revolução. Nasci 15 dias antes. Ela diz-me desde pequenino que vim anunciar a revolução. Acho piada...
Jwana — Ele acredita nisto... [riso]

Somos sempre para os nossos pais os Messias, os que salvam e anunciam...
Domingos — De megafone! [riso] A minha mãe conta que de 24 para 25 não sabiam o que estava a acontecer. Foi queimar uns papéis que podiam ser incriminatórios se a revolução não corresse bem. Correu bem, e eu com seis meses já estava na Reforma Agrária.

Conte bem isso.
Domingos — Havia jornadas de trabalho. Nessas jornadas ia tudo para o campo ceifar, vindimar, não sei.

Os seus pais trabalhavam ambos no partido. Os rendimentos de que viveram eram esses?

Domingos — Sim. A revolução foi importantíssima para eles porque era o culminar de um trabalho, um objectivo: acabar com o fascismo. Momento a seguir: e agora? Como é que se vai construir [a democracia]? Vivíamos de salários mínimos. Durante anos, vestia a roupa de filhos de outros funcionários do partido. Mas no Verão ia passar férias a casa dos meus avós, ao Algarve, e ficava três meses.
Jwana — Uma casa que era um palacete cheio de empregadas...
Domingos — Eram três meses de praia e boa vida. Esta dualidade acompanhou-me a vida toda. A família comunista e a família burguesa. Sou o resultado do conflito entre estas duas realidades.

Com a chegada da democracia, a sua família não deixou de ser empenhada politicamente. A maior parte das famílias, passados os anos quentes e subsequentes à revolução, deixaram de o ser, pelo menos no mesmo grau. Na sua família, a política manteve-se como centro.
Jwana — As que eram tão politizadas, ligadas ao PC, continuaram a ser. Foram-se adaptando a outras formas de fazer política.
Domingos — O Partido Comunista é para mim uma família. Realmente cresci dentro do partido. Saía do colégio...

Colégio? Palavra burguesa...
Domingos — Andei na Voz do Operário, uma cooperativa de ensino onde andavam todos os filhos de comunistas e pessoas de esquerda; e depois escola pública, sempre.
Jwana — Eu também andei na Voz do Operário.

Foi aí que se encontraram, sem se conhecerem...
Jwana — Temos vários encontros sem nos conhecermos.

Já vamos aos vossos falsos encontros, ou encontros anteriores ao “encontro”. Estava a dizer que vivia no partido...
Domingos — O meu pai entregava-me na carrinha da Voz do Operário na CGTP, na Rua Ivens, e a seguir deixavam-me na [rua] Soeiro Pereira Gomes, no Partido Comunista. Essa foi a minha infância. Passava a vida a ler na sede do partido...
Jwana — Livros da Caminho [então editora do PC], naturalmente. [riso]

Jwana, como é que o 25 de Abril marcou a história da sua família?
Jwana — O 25 de Abril marca o regresso do meu pai a Portugal e o início da vida da minha mãe em Portugal. Já tinha discos lançados [o primeiro é de 72], já era uma pessoa conhecida. Fazia todo o sentido vir para Portugal. Por outro lado, a minha mãe viu-se... não foi forçada a vir. Foi uma consequência. Ela própria se tornou cantora em Portugal no PREC.

Lançou então o disco Doce de Shila [1977].
Jwana — E o Lenga-lengas e Segredos [1979].

Lembra-se da sua mãe a cantar, quando era pequena?
Jwana — Lembro. Eu achava que ela cantava superbem em português... [riso] Cantava canções populares, músicas do meu pai, do Fausto, do João Lóio, do Júlio Pereira. Era completamente freak uma canadiana, hippie, cantar a chula e tocar colheres de pau (era o instrumento que a minha mãe tocava nos espectáculos). Hoje, que trabalho em música, percebo quão fascinante podia ser uma estrangeira cantar, num português macarrónico, “Já passei a roupa a ferro”.

O que é que ela lhe cantava?
Jwana — A mim cantava-me coisas dos Peter, Paul and Mary. Cantava lullabyes em inglês, sobretudo.

O que é que canta aos seus filhos? Canta muito bem.
Jwana — Há uma música do Zeca Afonso que cantei sempre como canção de embalar. [canta] “Ó minha amora madura, diz-me quem te amadurou.” Com os três, sempre que estive grávida, cantei essa música. Gosto de cantar para os meus filhos. Gostamos todos de cantar. Há uns que têm mais jeito do que outros.

O Domingos canta?
Domingos — Não conheço voz pior do que a minha. Estudei teatro e nas aulas de canto pediam-me para não abrir a boca — porque era o fim.
Jwana — Uma falta de afinação... [riso] Mas canta.

Que idade tinha quando os seus pais se separaram?
Jwana — Três anos e meio. Digo sempre que entre as coisas mais bonitas e incríveis que a minha mãe fez — por mim — foi ter ficado em Portugal. Para alguém que tinha o mundo que ela tinha, que vem para Portugal em 1974, que vem como “a mulher de” (enquanto eles estavam em pé de igualdade em todos os países por onde passaram, aqui é a mulher de uma pessoa conhecida)..., era muito fácil pegar em mim e voltar para o Canadá. A verdade é que não só ficou cá, para que eu também o tivesse [o pai], como manteve com o meu pai uma relação muito boa. Vivia uma semana com o meu pai e uma semana com a minha mãe.

Deve ter sido das primeiras pessoas em Portugal a viverem num quadro de guarda conjunta.
Jwana — Sim.

No pós-25 de Abril, a família tradicional estilhaçou-se e adquiriu novas formas. Como acontece a grande parte dos casais da vossa geração, vivem juntos, mas não casaram no papel nem na igreja. Porque não casam?
Jwana — Casamos, claro! Só ainda não casámos.
Domingos — Os meus pais casaram um dia, antes de irem trabalhar, tinha eu seis anos. Chegaram a casa e disseram-me: “Casámos hoje de manhã”, como se fosse uma coisa banal. Acho que nunca dei importância ao conceito de casamento por causa disso. Eles eram tão felizes antes como depois de casarem. E quantos amigos deles casaram, para logo se divorciar... Mas um dia destes gostava de casar com a Jwana.

Quer o pai, quer a mãe da Jwana reconstruíram diversas vezes núcleos familiares. Tem meios irmãos de um lado e de outro. A família do Domingos manteve uma configuração constante e tradicional.
Jwana — Tenho três irmãos todos meios irmãos. Da parte do meu pai tenho um irmão [André] e uma irmã [Leonor] de mães diferentes. Da parte da minha mãe tenho uma irmã [Sara], que também tem um irmão que não é meu irmão. A verdade é que há um equilíbrio no meio disto tudo. Os nossos filhos, nunca nenhum deles perguntou porque é que os meus pais se separaram. Têm contacto com a família tradicional do Domingos e têm contacto com a família... não gosto de dizer disfuncional, porque disfuncional tem uma carga pejorativa, e não tem, de todo, neste caso, mas com o lado mais caótico e polimórfico da minha família. Para eles, isto é uma coisa natural.

É muito no contacto com outros miúdos que percebemos a nossa diferença. Lembra-se de sentir na escola que tinha uma família diferente?
Jwana — Tinha alguns amigos que eram filhos de pais divorciados. Mas sentia a estranheza de viver com o meu pai e a minha mãe, sobretudo com o meu pai. Era raríssimo que crianças filhas de pais separados não vivessem [só] com a mãe. Às vezes causava-me alguma angústia, porque os outros miúdos diziam que ia ter de escolher. Que aos 18 anos ia ter de escolher!
Domingos — As separações foram uma consequência do pós-25 de Abril. Não tivemos uma revolução sexual. A Europa teve os anos 60 como momento de libertação, a promiscuidade era quase um valor. Nós estávamos sob o jugo do fascismo, aqui era igreja e futebol. A seguir ao 25 de Abril, pôs-se em causa tudo. A família, a relação homem-mulher. No caso dos meus pais, não aconteceu. Eram muitos sólidos [enquanto casal]. A Jwana teve uma família em que isso tudo se deu, eu tive uma família em que isso nunca se deu, e estamos muito próximos no que é a noção de família, na importância de estruturar uma família.

Vai sendo raro, nos tempos que correm, ter uma relação tão longa e tão visivelmente feliz como a vossa. Imagino que na turma dos vossos filhos sejam mais aqueles que são filhos de pais separados do que filhos de pais que estão juntos.
Domingos — Na Adeco, onde anda o António, [que tem dois anos e meio], já não sei quem são os pais e as mães dos miúdos...
Jwana — O meu pai divorciou-se várias vezes, a minha mãe também. Mas puseram-me sempre em primeiro lugar. Sempre. Promoveram sempre a minha ligação com os meus irmãos. Prezaram sempre a convivência com o outro. A semana de um era a semana de um. Não interferiam. Depois tive um fio condutor importante: a minha avó paterna. Era o meu lado 100% sólido, previsível, et cetera.

Apesar de viver no Porto. Numa altura em que não havia Skype e a mesma facilidade de comunicação, como é que era alicerçada a relação?
Jwana — Não percebo. Tinha também uma relação forte com os meus avós do Canadá. Vi-os 20 vezes, entre as vezes que fui ao Canadá e as vezes que vieram a Portugal. Com a minha avó paterna passava as férias todas. Todas as quartas-feiras falávamos ao telefone. Ela gostava dessas rotinas. E mandávamos cartas uma à outra.

Falou de uma coisa importante: sentir que estava em primeiro lugar. Uma âncora preciosa. Como fazer sentir à criança que ela continua a ser o centro?
Jwana — Eu sou a mais velha dos irmãos. Tinha a responsabilidade nas separações posteriores dos meus pais de [tomar conta].
Domingos — A Jwana passou a ser, de alguma forma, pai e mãe do pai e da mãe.

Quando é que isso começou?
Domingos — Ela é uma mãe maravilhosa. Sou superfeliz por ela ser a mãe dos meus filhos. Não sei se não desenvolveu o instinto maternal a partir da avó.
Jwana — Quando ficámos grávidos da nossa primeira filha e vivíamos fora [em Londres], a minha mãe encontrou o meu irmão. Ela ia ser avó, ele ia ser tio. “Que maravilha. Finalmente, a Jwana vai ser mãe e vai deixar-nos em paz.” Disseram isto os dois. [riso]

Que família é que sonhavam ter quando eram pequenos?
Domingos — Eu tive muito amor. Os meus pais sempre amaram muito os filhos [Domingos tem uma irmã mais nova, Maria]. Tive uma infância muito feliz. Tínhamos uma relação muito honesta.

Honesta? Palavra rara quando se descreve uma relação pai-filho.
Domingos — Sempre disse tudo o que pensava aos meus pais. Às vezes, temos uma honestidade brutal. Quer dizer, não escondemos as coisas uns dos outros. Com a morte do meu pai, ainda mais isso se acentuou.

Pode contar como se deu a morte do seu pai?
Domingos — Foi em Fevereiro de 98. Eu tinha 23 anos, estava a viver em Itália, a fazer teatro. Ouvimos falar da morte, morrem avós, mas o momento em que nos apercebemos da mortalidade é quando morre um pai ou a mãe. Percebemos que uma das nossas ligações à terra desapareceu. Que ficamos directamente ligados. E que um dia destes somos nós.

Foi uma morte súbita.
Domingos — O meu pai tinha um problema cardíaco, foi operado. Apanhou um vírus no hospital, que não se fazia notar, mas que foi enfraquecendo o coração. Até que houve um momento em que parou. Do nada. Foi muito traumatizante, fez-nos unir-nos ainda mais e fez-nos intensificar a relação honesta do dia-a-dia.

Acontece frequentemente os pais não terem noção de quem são os filhos, do que se passa na cabeça deles, de qual é o seu mundo. É difícil manter uma relação íntima, sem ser intrusivo e promovendo a emancipação dos filhos, sobretudo depois da adolescência.
Domingos — Conheço poucos casos com a relação honesta que tenho com a minha mãe.
Jwana — Eu não conheço. Nem sabia que existia.

Pode concretizar?
Domingos — Com a idade, cada um vai adoptando um papel. Um toma o papel do pai, o outro toma o papel do filho. Isso faz com que as relações sejam imbuídas de preconceitos — do que é que o pai deve ser, do que é que o filho deve ser. Então cada um vai construindo o seu mundo privado, que separa do mundo familiar. No caso da minha família, a honestidade sentimental — isto de revelarmos o que pensamos, quem somos e o que fazemos — [é a regra]. Às vezes dói. Mas a síntese, o que sobra das nossas discussões, é o autoconhecimento e o conhecimento do outro. Outra coisa que senti com a morte do meu pai: perdi-o, nunca mais vou voltar a vê-lo. Não sou crente, sei que acabou. Ele não chegou a conhecer-me totalmente. Conheceu-me até à adolescência. Fiquei com imensa pena de ele não me ver crescer.

Expliquem melhor como é que não ficaram tolhidos pelo dever ser, que é o acontece normalmente às pessoas e às famílias, e que as faz ficar presas à imagem que o outro tem de si, às expectativas.
Domingos — Com a morte do meu pai, determinei que não há espaço na minha vida para não ser honesto. Tenho isso com a Jwana também. A coisa que mais me apaixona na existência são pessoas. Adoro pessoas! Amo profundamente a minha família comunista e a minha família industrialista. Parece absurdo. Para mim, é só humanismo. O melhor de tudo é descobrir algo de interessante e especial nas pessoas.

Essa convivência entre esquerda e direita e entre maneiras tão diferentes de estar também é próprio dos anos da democracia. Antes da revolução, esquerda e direita não se davam. Os pólos permaneciam distantes, os mundos eram estanques. Há uma abertura que a revolução trouxe.
Domingos — Completamente. O meu pai não foi logo aceite na família da minha mãe. Porque era comunista, revolucionário, militante.
Jwana — Mas foi o lado humanista que fez com que fosse aceite.
Domingos — O meu pai era uma pessoa de pessoas. Tinha milhares de amigos. Herdei isso dele. Gosto todos os dias de me apaixonar por uma pessoa nova. [olha para Jwana] Apaixonar no sentido intelectual... [risos] Fazer um amigo é uma coisa maravilhosa.

“É que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há”, escreveu o pai da Jwana em Com um Brilhozinho nos Olhos.
Jwana — Essa música, na realidade, foi feita para o Domingos. [gargalhada] O arauto da nossa relação foi escrito em 1980 pelo meu pai.

O seu pai compôs alguma música para si?
Jwana — Mais ou menos. A Linhagem Feminina do último disco, e que é a primeira em que ele se expõe...

E na qual fala da Margaridinha, no Francisquinho, no Antoninho... nos netos.
Jwana — Há a Linda Joana, que pensavam que era para mim, mas eu ainda não tinha nascido. O Espalhem a Notícia, que tem que ver com o nascimento, também não é para mim. O Primeiro Gomo da Tangerina foi uma música inspirada na minha irmã [Leonor] e que dedicou aos três filhos.

Como é que imaginava que ia ser a sua família?
Jwana — Eu imaginava obviamente que ia ser mãe.

Obviamente?
Jwana — Obviamente. A maternidade, a gravidez, tudo isso sempre me fascinou. Uma família grande. Uma família com filhos. Imaginava que ia ter o pai [dos meus filhos] presente — também pela herança do que o meu pai foi comigo. Depois é melhor ainda do que eu imaginei.
Domingos — Quero ainda dizer isto: a minha mãe era do MDM, Movimento Democrático de Mulheres. Fui educado a ser mais antimachista do que a maior parte das mulheres.

Essa é outra diferença nos anos da democracia: o papel do homem e da mulher dentro de casa.
Domingos — Costumo chamar “primatas” às pessoas que têm comportamentos machistas e que elas nem percebem que são machistas. Isso também me ajuda a ter uma relação honesta com a Jwana. Partimos sempre do mesmo ponto de igualdade.

Falemos agora dos vários encontros que viveram antes de se encontrarem efectivamente.
Domingos — A Jwana é quem tem uma memória boa cá em casa. Costumo dizer que só me lembro do futuro.
Jwana — Cruzámo-nos na Voz do Operário. Temos um grande, grande amigo em comum, o Sérgio, que nos apresentou. Foi meu colega da faculdade e desde sempre é amigo-irmão do Domingos. Só que o Domingos vivia fora. Um dia estivemos juntos à noite, mas ele não se lembra minimamente. Causei zero impacto! Ele diz que esse momento não aconteceu... Eu lembro-me e tenho testemunhas — os outros amigos dele a quem causei um ligeiro impacto.
Domingos — Isso nunca aconteceu. Porque quando conheci a Jwana percebi que nunca tinha conhecido ninguém. O meu passado deixou de existir.

Percebeu logo que era o/a tal?
Domingos — Conhecemo-nos, apaixonámo-nos e começámos a criar a nossa história. O resto não interessa. O melhor na nossa relação é que todos os dias nos focamos nela, em melhorá-la, um no outro.
Jwana — O Domingos é maravilhoso.

Como é que não se cansam um do outro?
Domingos — Além da honestidade incrível que temos, há um ponto importante: estamos numa constante evolução. Quando a Jwana me conheceu, eu estava a fazer cinema. A seguir tive uma editora de livros, a Cavalo de Ferro. A seguir tive uma produtora de cinema. A seguir montei uma empresa de Internet que fazia transmissão de concertos ao vivo. Agora tenho uma agência de publicidade ligada às redes sociais.
Jwana — Temos uma relação muito próxima, mas temos vidas independentes ricas, e que trazemos q.b. para a relação quando isso é enriquecedor. Cada um de nós tem um mundo próprio muito forte.
Domingos — Eu puxo o mais possível pela Jwana, pelo lado melhor da Jwana, e ela puxa por mim, pelo melhor que há em mim. Acho que vai ser assim até morrer. Ao contrário da maior parte das pessoas que, a partir do momento em que tiram um curso universitário e arranjam um trabalho, já está, eu não tenho essa visão da vida. Preciso constantemente de desafios. Não era um bom aluno a línguas e agora falo cinco línguas.

Como é que aprendeu?
Domingos — Fui obrigado. Vivi em Itália, fiz imensos amigos italianos. Em Espanha, estive dois anos. Nunca falei muito bem nenhuma destas línguas. Comunico bem, aprendi com os locais.
Jwana — O slang [calão] ajuda sempre.
Domingos — Sou um desastre na gramática.

Outra marca deste Portugal: a abertura ao exterior. Se não fosse por razões políticas, era menos habitual no período da ditadura. Porque é que tiveram necessidade de viver fora?
Jwana — Os meus pais tornaram-se as pessoas que são vivendo fora.

Isso significa, mais do que tudo, lidar com o desconhecido, perceber como é que somos em situações limite?
Jwana — Sim. Desafiar-nos. Construir outro mundo. Saí mais tarde do que o Domingos. Não estudei fora.

Foi trabalhar para a EMI inglesa, depois de ter trabalhado na EMI portuguesa. Enquanto international marketing manager, acompanhou bandas como os Placebo, Kelis, Kings of Convenience, The Thrills. O último trabalho que fez antes de regressar a Portugal foi coordenar o marketing do disco dos Rolling Stones A Bigger Bang para todo o mundo.
Jwana — Saí num momento muito bom da minha vida profissional. Lembro-me de ter tido uma conversa com o meu pai para me aconselhar (ele tinha tido a mesma necessidade de sair) e de estar lavada em lágrimas ao almoço: “Não percebo porque é que agora que as coisas me estão a correr tão bem me quero ir embora.”

Quanto tempo esteve fora? Nesses anos de Londres já vivia com o Domingos.
Jwana — Quatro anos, de 2002 a 2006. Voltámos porque nasceu a nossa primeira filha e, com crianças, queríamos estar próximo das nossas famílias. Costumo também dizer, poeticamente, que queria que os meus filhos crescessem com sol. Faz diferença.

Mantinham a ligação a Portugal, recebiam amigos? Quantas pessoas receberam em Londres no primeiro ano que lá viveram?
Jwana — Noventa e duas. Não estamos a contar pessoas que nos visitaram mais do que uma vez. Noventa e duas pessoas são 92 pessoas.
Domingos — Temos um grande amigo, o António, um actor espanhol com quem tinha vivido em Madrid, que foi tirar um curso de uma semana e que ficou em nossa casa quatro meses.

Isso diz de como são gregários. Porque é que o Domingos saiu de Portugal com 19 anos?
Domingos — Tinha um gosto pela aventura. Em Portugal sentia-me parado. Tinha acabado de ser aceite numa universidade para fazer um curso de advocacia.

Ia ter uma vida chata? Recusou essa perspectiva?
Domingos — Não sei se era chata. Muitas pessoas que conheço tiraram o curso porque tinham de tirar o curso. Eu estava cheio de dúvidas. Arranjei a desculpa de querer estudar teatro em Londres e fui.

Para ser actor?
Domingos — Actor. Mal cheguei a Londres, comecei a trabalhar. Num bar, em restaurantes. Para poder pagar os meus estudos. Não falava bem inglês e passei os primeiros meses a lavar pratos e a servir pequenos-almoços. Questionei tudo. Evitei dar-me com a comunidade portuguesa. Tenho um respeito imenso pela comunidade portuguesa (supertrabalhadores), mas eu não ia para fora para estar com portugueses. Fui para Inglaterra para viver como os ingleses vivem.

Esteve 14 anos fora, no total.
Domingos — Quase dez em Londres, dois em Espanha, quase um em Itália. Depois estive seis meses na Índia, dois meses na Tailândia, Laos, um mês em Cuba, um mês no Brasil. Estudei em Nova Iorque, fiz um curso lá, mas não vivi nos EUA. Fiz uma viagem longa à Jordânia, Síria, Líbano, Turquia, com a minha irmã, e depois apareceu a minha mãe...
Jwana — E eu! [riso]
Domingos — A minha mãe e a Jwana apareceram.
Jwana — Aparecemos?!

Em qualquer sítio, sente-se bem?
Domingos — Sinto-me em casa em qualquer sítio.

O que é que vos faz medo?
Jwana — [pequeno silêncio; vira-se para Domingos] O que é que nos faz medo? Eu sou muito diferente do Domingos e beneficio muito do Domingos nisso. Faz-me medo tudo o que está relacionado com o bem-estar dos meus filhos e da minha família. Não tenho tanto medo da morte como o Domingos tem.
Domingos — Eu só tenho medo da morte. O medo da morte é o medo de acabar esta viagem. Mas o medo nunca me travou. Vejo pessoas com um talento incrível, com um potencial fantástico e que vivem bloqueadas pelo medo. Eu, que se calhar não tenho tanto talento como elas têm, como não tenho medo...

Acha que se safa sempre? É o quê?
Jwana — Ele acha que há sempre solução.
Domingos — Os meus padrinhos. Dez anos presos, torturados e no entanto aquele amor pela vida... Ter medo do quê? Se perder a minha casa, vou encontrar um sítio onde me abrigar — até voltar à luta outra vez. Somos uma sociedade que lida muito mal com o falhanço, e medrosa.

Se calhar é porque tem o essencial, e que reconhece como essencial, que percebe que pode perder tudo o resto. Há um reduto a partir do qual pode refazer tudo outra vez. Esse lugar é a família?
Domingos — É a família e a autoconfiança. A nossa filha Margarida foi visitar uma amiga à Suíça. Tinha cinco anos. O pai da amiga, quando ela chegou, perguntou-lhe: “Tiveste medo?” Ela respondeu: “Medo de quê?”
Jwana — Não percebeu a pergunta.
Domingos — Os nossos amigos achavam que éramos loucos por deixar a Margarida ir uma semana para a Suíça. Sozinha. Fui levá-la ao aeroporto, deixei-a com a hospedeira e ela estava felicíssima. Foi um dos maiores orgulhos da minha vida.

As pessoas ficam reféns dos filhos, de um equilíbrio material para os filhos. Como é que conseguem não ficar reféns? E ter três filhos tão felizes, tão equilibrados. Viajam com eles, vão para lugares onde estão dez graus negativos como se fosse uma ida à Costa de Caparica. Convosco tudo parece fácil.
Domingos — Qual é que é o exemplo que queremos deixar aos nossos filhos? Acha que eu quero que os meus filhos achem que eu sou um medroso? O exemplo que eu quero dar é o de alguém destemido, e [mostrar] que há perigos todos os dias, e que, apesar de seguirmos as nossas rotinas, isto é o caos. A única coisa que quero que tenham é critério (e para isso é preciso uma educação boa), que sejam capazes de tomar decisões e que não tenham medo de seguir os seus instintos e os seus sonhos.
Jwana — A melhor coisa que podem dizer dos nossos filhos é que são felizes. Saber tirar o melhor de cada dia é uma coisa que têm os três. Eles sabem que de qualquer coisa se pode tirar proveito, prazer, felicidade e partilha.
Domingos — Põe-me doente o proteger demasiado as crianças.

Que é uma constante da nossa sociedade receosa. Até porque passaram a nascer menos crianças e elas se tornaram o tesouro e centro da vida dos pais. Muitas estão transformadas em flores de estufa.
Domingos — Adoro os meus filhos, adoro cada momento que passo com eles. Era capaz de ter mais um, embora não haja condições para isso. Tento sempre não lhes facilitar a vida demasiado. Têm de aprender a conquistar tudo o que têm. Digo-lhes: “Não tens de ser o melhor. Tens de tentar fazer o melhor possível.”
Jwana — Estás a ser demasiado soft com o que és na realidade. Mas fica-te bem.

Esta sociedade ficou muito marcada pelo consumismo. Muitas famílias endividaram-se até ao osso. Vocês vivem numa casa alugada, não têm um carro topo de gama, os vossos filhos frequentam uma boa escola, mas não é a escola mais cara. Porquê esta opção?
Jwana — Tem a ver com a escolha: em que é que se gasta o dinheiro? Para nós, é muito mais importante viajar, sozinhos e com eles.

Continuam a viajar sozinhos frequentemente?
Jwana — Continuamos a viajar só os dois todos os anos, dez dias. Faz-nos bem enquanto casal e isso reflecte-se necessariamente neles. Gastamos também dinheiro a receber pessoas. É mais importante dar-lhes [esse contacto com outros] do que dar-lhes mais coisas materiais, aparelhos electrónicos, roupa de marca... São escolhas.
Domingos — Qualquer dinheiro gasto num carro é um desperdício. Estou-me borrifando para o status que um carro de luxo pode dar. Vivemos bastante bem para o que é a realidade portuguesa. Temos uma casa boa no centro de Lisboa, conseguimos pagar uma educação boa aos nossos filhos.

Imaginemos que daqui a 40 anos os vossos filhos vão falar dos pais, como vocês começaram por falar dos vossos pais. O que é que imaginam que será mais determinante e que eles contarão?
Jwana — Acho que [dirão] aquilo que o Domingos dizia dos pais e dos padrinhos: o amor um pelo outro. É muito bom que tenhamos isso e que partilhemos isso com os nossos filhos. Depois, o exemplo de pais que construíram coisas em conjunto. Gostava que dissessem da felicidade que viveram em toda a sua infância.
Domingos — The best is yet to come [o melhor está para vir]. Isto é um crescendo. Não sei o que é que vão pensar daqui a 40 anos.
Jwana — Não olhes para o futuro, fala sobre agora. [riso]
Domingos — Estou a criar condições para intervir um pouco mais na sociedade. Poder, de alguma forma, retribuir esta aprendizagem que tenho vindo a fazer. Gostava que estes valores passassem para eles. Mais do que tudo, gostava que tivessem critério e que não tivessem medo. “Não tenham medo de falhar. E quando falharem, não tenham medo de começar logo a seguir.” Que não tenham medo de ninguém. Se calhar por causa da proximidade que tive com figuras como o Álvaro Cunhal, com grandes figuras do PC — eu era terrível, dava caneladas... Não interessa quem é a pessoa que está do outro lado. “Vocês são tão valiosos, cada um de vocês é tão valioso como a pessoa mais valiosa do mundo, ou considerada a mais valiosa do mundo.” Têm de ter amor próprio, tudo é possível, o céu é o limite. “Estão a ter uma educação sólida. Por favor, metam-se em barcos de madeira, com instrumentos esquisitos e partam para conquistar novos mundos.”

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