Reinventar a humilhação

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A primeira sensação é de desconforto. Oitenta homens desfilam com o que resta das suas fardas militares. Vão de cabeça baixa e mãos atrás das costas. No vídeo, parecem algemados. Mais tarde, nas fotografias, percebe-se que não. Houve apenas uma ordem para que pusessem os braços assim. Marcham todos da mesma forma. Muitos têm a barba por fazer e estão sujos. São soldados ucranianos feitos prisioneiros pelos rebeldes pró-Rússia. A guerra começou há quatro meses e caminha para os três mil mortos.

O vídeo prossegue. A segunda sensação é de interrogação. Quem é aquela multidão? Há dois tipos de pessoas a assistir ao desfile. Os que olham como se aquilo fosse uma suave curiosidade de Verão. Estão de mão dada aos filhos pequenos, com vestidos bonitos, a caminho de um passeio ou de um almoço de família. Olham para aqueles homens com o mesmo à-vontade com que já olharam para desfiles de Carnaval ou procissões religiosas. Estão entretidos e divertidos, acima de tudo passivos.

Outros, pelo contrário, gritam palavrões e atiram coisas que não se percebe bem o que são para cima dos prisioneiros. Serão ucranianos de origem russa que perderam filhos e maridos na guerra ou simplesmente gente que acredita ferozmente que os russos têm razão, que não se trata de uma invasão, mas apenas de reposição da história, e que os ucranianos são desprezíveis e devem ser humilhados na praça pública.

Estaline fez o mesmo aos soldados nazis que tomou como prisioneiros. Mao Tsetung também. Os russos da era de Putin não inventaram nada. Apenas redescobriram formas velhas de humilhar o inimigo. Nas ruas a ver, tanto uns como outros tiram fotografias com smartphones modernos para mostrar a alguém mais tarde ou publicar no Facebook. Partilham um momento de humilhação com a mesma leveza com que partilham as fotografias de uma corrida de cavalos.

A terceira sensação é de horror. O que são aqueles camiões com depósitos de água a lavar o chão? A rua ficou suja com as pegadas do inimigo? Há vírus ébola? Num minuto e 35 segundos, os russos criaram um manual de instruções moderno sobre a humilhação do inimigo.

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Captações de ecrã de vídeo da televisão russa que se tornaram virais

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