Lições de uma ex-sovietóloga

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A imagem desta semana — homens e mulheres pró-russos que ocuparam os edifícios públicos de três cidades ucranianas, num gesto interpretado como de “desordem separatista” orquestrada por Putin — serve apenas de pretexto para partilhar a bela história que Angela Stent publicou há dias no Washington Post. O texto é melhor do que 50 boas análises sobre a crise na Ucrânia juntas.

Stent é uma académica de 66 anos, que nasceu e estudou em Inglaterra e se tornou professora das melhores universidades americanas e conselheira no Departamento de Estado de Clinton e Bush-filho. Em cinco páginas A4, explica porque é que a crise ucraniana apanhou o mundo ocidental de surpresa. O título é sugestivo: “Porque é que a América não compreende Putin”. As respostas são simples. E essencialmente duas.

Primeiro, porque os EUA vivem com a Rússia uma relação de “ciclos de resets”. Aos picos de esperança numa aproximação, seguem-se anos de desistência. Esse constante “reiniciar”, como fazemos nos computadores, elimina a capacidade de antecipar crises. Como a de hoje.

Em segundo lugar, porque o interesse dos EUA pela Rússia “vai e vem” ao ritmo das “modas académicas”. Nos últimos dez anos, foi a China e o mundo árabe que estiveram na moda. “Quando muito”, diz Stent, a Rússia foi o “r” da sigla BRIC, mas sempre como o cinzentão do grupo.

O texto é a história da metamorfose de uma académica que começou por ser “russóloga”, se tornou “sovietóloga”, a seguir “ex-sovietóloga” e agora é “russóloga” outra vez.

É com base nestes 40 anos de estudos russos que a professora faz um alerta: é preciso compreender o Kremlin, “especialmente as suas motivações e as suas maquinações”; é preciso conhecer a língua, a região, a cultura, a economia e a política; é preciso conhecer a História e o país.

Stent conta como os departamentos de Estudos Russos foram criados nas universidades americanas nos anos 1940, a seguir à II Guerra Mundial, mal os EUA perceberam que não conheciam o seu novo adversário da Guerra Fria. Nos anos 1970, com poderosos arsenais nucleares apontados um contra o outro, a URSS tornou-se um tema sexy. “My timing was good”, escreve. “Quando em 1991 Gorbatchov anunciou, num discurso de 11 minutos, que a União Soviética já não existia, os tempos também mudaram para nós, sovietólogos.” Para quê estudar um país que se tornara livre e democrático? Quando finalmente se podia circular na Rússia, os académicos deixaram de querer ir lá. Foram substituídos por especialistas em democracia e economia. Foi já em 1999, no fim da guerra do Kosovo, que Stent foi contratada pelo Governo americano. Como hoje, Moscovo dizia que Washington ignorava os seus interesses. As tentativas de reset de Clinton não funcionaram. Nem as de Bush. Nem as de Obama, agora. As lições de uma “russóloga”. 

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