As piadas também têm graça quando são contadas pelos políticos?

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A passagem de Barack Obama pelo The Daily Show, em Outubro, deu a Jon Stewart a maior audiência desde Janeiro Jason Reed / Reuters

Fazer uma campanha eleitoral nos EUA sem passar pelas cadeiras de Jon Stewart ou Jay Leno teria a sua piada, mas o humor é hoje em dia um assunto muito sério. Um jogo que interessa a ambas as partes e que está longe de ser improvisado

Os candidatos às presidenciais nos EUA não dispensam passagens pelos talk shows de apresentadores com carreira feita no humor, como Jon Stewart ou Jay Leno. O fenómeno não é de agora, mas vem ganhando relevância à medida que os líderes políticos se sentem quase obrigados a mostrar aos eleitores que também eles são cool e conseguem rir-se de quase tudo.

É um jogo que agrada a todos - apresentadores/humoristas e políticos. Por exemplo, a ida de Barack Obama ao The Tonight Show de Jay Leno, na semana passada, deu ao programa a melhor audiência desde o regresso do apresentador, em Março de 2010, após um interregno preenchido com pouco sucesso comercial por Conan O"Brien. Uns dias antes, o Presidente Obama sentou-se na cadeira reservada aos convidados de Jon Stewart e o resultado foi a melhor audiência do The Daily Show desde Janeiro.

Dos talk shows de Stewart, Leno ou O"Brien, aos vídeos mais provocatórios de Sarah Silverman, passando pelas declarações de voto de Doug Stanhope, os humoristas norte-americanos são hoje importantes para a escolha de um candidato, especialmente entre o eleitorado mais jovem. Mais uma vez, o fenómeno não é novo: já em 2006, um estudo da Universidade de East Carolina, na Carolina do Norte, intitulado The Daily Show Effect, mostrou que os efeitos das piadas de Stewart sobre George W. Bush e John Kerry fizeram com que os participantes "tendessem a classificar ambos os candidatos negativamente, mesmo depois de controladas variáveis como a inclinação partidária e características demográficas".

Em Portugal, não é hábito chegar-se tão longe. A experiência mais próxima foi protagonizada pelos Gato Fedorento, nas legislativas e nas autárquicas de 2009. O programa Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios, apresentado por Ricardo Araújo Pereira e inspirado no The Daily Show, teve como convidados os candidatos dos principais partidos de então, como José Sócrates e Manuela Ferreira Leite. Um dos autores do programa, José Diogo Quintela, reconhece os benefícios para as audiências: "No Esmiúça não estávamos a participar numa lavagem de imagem. Mas sabíamos que o programa teria mais audiência se tivesse lá os protagonistas. Daí termos convidado todos."

O humorista lembra apenas uma excepção: "Só não convidámos Miguel Relvas porque nos avisaram logo que ele não iria, por ser época de exames." Mais a sério, José Diogo Quintela recorda que José Sócrates foi questionado sobre se poderia "acabar com o telejornal da SIC, porque a Clara de Sousa tinha estacionado no lugar do Ricardo. Se, por causa desta pergunta, um espectador pensar que, de facto, José Sócrates quis acabar com o Jornal de Sexta da TVI, não é simpático para a imagem dele. E se isso tivesse acontecido tinha sido por causa do Esmiúça, porque não me lembro de outro entrevistador, mesmo num programa não-humorístico, lhe ter perguntado sobre esse tema".

O que Quintela admite é que "a ida ao programa pode transmitir uma imagem mais descontraída, uma vez que são vistos fora do ambiente formal em que costumam aparecer às pessoas. O primeiro-ministro até foi de jeans."

Para Luís Pedro Nunes, director do suplemento satírico Inimigo Público, "a experiência americana acaba por ser o paradigma, mas a experiência portuguesa não consegue replicar de maneira nenhuma a experiência americana", porque "os políticos portugueses vivem numa pequena armadilha na maneira como reagem ao humor, que começou, por exemplo, com o Contra-Informação".

"Falta talento"

Apesar da recente participação de alguns políticos em programas como o 5 para a Meia-Noite, na RTP1, Luís Pedro Nunes considera que o humor durante as campanhas Presidenciais nos EUA "é uma coisa diferente", porque está "no campo do debate com entrevistadores que usam o humor para poderem ter um debate ao mesmo nível". E salienta que muito do que passa nos talk shows norte-americanos está previamente preparado. "Quando o Obama vai ao Jon Stewart, leva um tipo de mensagem para perguntas que, convenhamos, estão previamente preparadas. Não há ali um improviso total. Aliás, em todos aqueles programas, seja o Jon Stewart, seja o Jay Leno, as pessoas sabem do que vão falar", frisa.

O que falta então aos políticos portugueses para seguirem o exemplo dos políticos norte-americanos e aproveitarem o humor como arma eleitoral? A resposta é taxativa: "Falta talento." Ao contrário de Portugal, "os Estados Unidos têm um tipo que é imbatível. Não me parece que exista um tipo com a capacidade do Obama no resto do mundo. Para além de tudo, é um performer, um entertainer. Quanto mais ele for encostado e desafiado, mais conseguirá reconquistar esse tipo de pessoas que perdeu. Há ali profissionalização, mas também há talento", afirma Luís Pedro Nunes.

Já o humorista Rui Sinel de Cordes, conhecido pelo seu humor negro, considera que nos talk shows norte-americanos não há uma relação de igualdade entre candidatos e apresentadores. "Todos os candidatos políticos que vão a programas como os do Jay Leno, Conan O"Brien ou Jon Stewart sabem que é importante para eles. E quando eles lá vão, a sensação de superioridade está do lado do apresentador. "Tu vieste aqui porque tens de vir aqui e o público está comigo; e ou tu fazes aquilo que eu quiser, ou tu é que te lixas". Cá, quando um político vai a um programa - e é raro ir -, ele é muito maior. O apresentador está contente por ele lá ter ido. A gestão de poder é completamente alterada e é por isso que cá isso não funciona tão bem." Falamos de uma questão cultural, mas também das diferenças de dimensão dos mercados. "Cá, se metes a pata na poça, ficas sem trabalhar na televisão e estás lixado. Como é que pagas as coisas? Lá, não. Lá vendes um DVD e podes viver só disso. É mais fácil ser-se campeão lá do que cá", afirma.

Mas o humor nas campanhas nos EUA não vive só de talk shows para grandes audiências, onde é preciso respeitar limites. O que acontece quando a actualidade política é vista por humoristas que não têm talk shows para apresentar, nem limites para respeitar?

Uma das mais conhecidas frases do humorista norte-americano George Carlin (1937-2008) - "O dever de um comediante é descobrir onde estão os limites e ultrapassá-los deliberadamente" - é posta à prova todos os dias nas televisões, nas redes sociais ou nos espectáculos de stand-up, mas ganha especial importância durante as campanhas para as presidenciais. Uma das comediantes que põem à prova a frase de George Carlin é Sarah Silverman. Em Julho, Silverman fez uma "proposta indecente" a Sheldon Adelson, o magnata dos casinos que se comprometeu a doar 100 milhões de dólares para ajudar a derrotar Barack Obama. Num vídeo patrocinado pelo Conselho Judaico para a Educação e Investigação dos EUA, a comediante lançou o desafio, que dificilmente seria possível replicar em Portugal: "Se deres esses 100 milhões ao Obama e não ao Romney... Bem, não vou "fazer sexo" porque não somos casados e eu sou uma rapariga decente, mas prometo fazer uma tesoura contigo, vestida apenas com um biquíni." Sarah Silverman ilustra depois o que é uma tesoura, deitada num sofá, vestida apenas com um biquíni e com a ajuda do seu cão.

Declarações de apoio

À semelhança de Sarah Silverman, o comediante Doug Stanhope anunciou publicamente o nome do seu candidato preferido nas eleições deste ano - o antigo governador no Novo México Gary Johnson, do Partido Libertário. Na lista dos pontos negativos, Stanhope salienta um: "Ele é honesto de mais." E explica: "Por que não há-de ele mentir sobre uma merda qualquer que queira fazer? É um modelo que tem resultado para os políticos desde que me lembro, mas só é usado pelos mais perversos. Por que é que um tipo não há-de ser contra os pretos durante a campanha e depois libertar os escravos quando for eleito? As tretas têm uma taxa de sucesso tão elevada que não deveriam ser postas de lado, especialmente se forem uma oportunidade para implementar mudanças drásticas a favor da liberdade."

O apoio declarado de humoristas a candidatos em eleições é mal visto por Rui Sinel de Cordes, ele que foi processado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, por causa do programa Especial de Natal, na SIC Radical, emitido em 2011. O humorista passou a poder incluir no seu currículo "referências com incidência na dignidade humana e direitos, liberdades e garantias" e "linguagem grosseira", mas diz que "jamais participaria numa campanha política". A razão é simples: "Eu nunca votei e não tenho problemas em dizer isso. Não me estou a ver um dia levantar-me e ir a um sítio desses votar, por isso também não me envolvo." Mas admite que pode haver outras razões para que outros humoristas também evitem envolver-se em campanhas eleitorais. "Cá os humoristas cortam-se um bocado, não sei porquê. Não querem perder público, não sei bem qual é o motivo", diz.

Seja num talk show ou num qualquer obscuro clube de stand-up, a frase de George Carlin sobre os limites do humor é relativizada por Luís Pedro Nunes e José Diogo Quintela. Para o director do Inimigo Público, "é claro que há limites", mas "é natural e saudável que os humoristas queiram ultrapassar esses limites". Apesar de não se considerar um humorista - "Eu sou o mete-nojo que não deixa as coisas passar" -, Luís Pedro Nunes sabe bem o que se passa na cabeça dos humoristas: "A ideia muitas vezes é abrir os jornais e fazer piadas, mas os jornais estão cheios de tragédias. Só que na cabeça de um humorista isso não existe. Não existe a tragédia, não existe a desgraça; existe apenas um objectivo, que é uma boa piada. Não existe o lado humano, vale tudo." José Diogo Quintela é um humorista, mas tem bem definido o seu limite: "A linha é a traçada pela lei que protege a liberdade de expressão e ao mesmo tempo protege o bom-nome das pessoas, impedindo a injúria e a calúnia. Pode-se escrever e dizer o que se quiser, desde que não se esteja a difamar alguém."

Do outro lado do Atlântico, ouve-se a voz de Bill Hicks (1961-1994), numa resposta a uma jornalista da BBC2, que se confessou chocada com as suas piadas: "Não, não há limites. Defendo a eliminação dos limites. Quer que lhe recomende uns malabaristas de que é capaz de gostar?"

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