Preservar a memória pastoril numa aldeia da Guarda

No lugar de Eiras, situado a poucos metros do centro de Fernão Joanes, concelho da Guarda, instalou-se, durante o passado fim-de-semana, um verdadeiro museu ao ar livre. São 23 peças escultóricas, criadas pelos alunos da Escola Secundária de Soares dos Reis, do Porto. O rebanho com o pastor, ovelhas em espiral, burro, cão da serra e torre chocalheira são apenas alguns desses objectos. Ao todo, são 45 toneladas de ferro moldado, que transmitem memórias, saberes e afectos da actividade da transumância. A única aldeia no país exclusivamente habitada por animais começa agora a ter uma aproveitamento turístico, preservando-se ao mesmo tempo o património pastoril ali existente. A Festa da Transumância abriu o terceiro Ciclo de Cultura Tradicional, organizado pela autarquia.A mostra dos alunos da Escola de Soares dos Reis é apenas mais um dos frutos do trabalho que este estabelecimento de ensino tem vindo a desenvolver, desde há três anos, em parceria com o Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE), no sentido de promover acções de intervenção técnica, artística e pedagógica na zona da serra da Estrela. No ano passado, os alunos e um grupo de jovens, alguns dos quais estrangeiros, sob a orientação da professora Fernanda Laje, recuperaram a "Cortelha do André", um lugar de pernoita de pastores e gado situado junto a grandes penedos. Neste ano, legaram a Fernão Joanes o conjunto de 23 esculturas, que povoam a "aldeia dos animais", local que foi palco das principais actividades da Festa da Transumância, uma iniciativa da Associação Cultural e Recreativa e da Junta de Freguesia local, que contou com o apoio da Câmara da Guarda. Para a maioria dos pastores, restam as memórias e tempos de sacrifício. Durante dias seguidos, pastores e rebanhos percorriam caminhos, canadas, em busca de faustas pastagens. Aí permaneciam meses a fio, ao frio, à chuva e com pouca comida. Mas sempre com a esperança de ter valido a pena. Em Fernão Joanes a tradição permanece bem viva e, pelo terceiro ano consecutivo, serviu de pretexto para a realização de uma festa, uma homenagem aos filhos da terra, que durante anos a fio fizeram da transumância uma arte.Fernanda Laje, professora da Escola de Soares dos Reis, evidencia a preocupação e o interesse que os alunos têm vindo a demonstrar nestas "aulas na serra". E gostaria que alguns dos trabalhos expostos pudessem ser aproveitados pelas diversas entidades. A docente, que tem ligações afectivas a Manteigas, defende que deverá ser feito um levantamento exaustivo das canadas e posteriormente apostar-se na sua recuperação, o que permitiria criar rotas culturais entre Portugal e Espanha. Estes caminhos da transumância, que só os pastores e os rebanhos conheciam, são um património que tende a desaparecer. Em Espanha, o levantamento das canadas está efectuado e sabe-se quantas vias pecuárias atravessavam o país. Santiago Bayón Vera, um economista espanhol que tem marcado presença em Fernão Joanes, diz que nos 125 mil quilómetros de via pecuária em Espanha existem canadas reais com 70 metros de largura e veredas com vinte metros. "Por ser um bem que não existe noutro país da Comunidade Europeia, essas vias deveriam ser consideradas Património da Humanidade" e "fazer depois com que possam servir de escola viva, onde os professores seriam os próprios pastores", sustenta. Admite, contudo, que é impossível recuperar todas estas vias, uma vez que "foram invadidas por obras da administração pública e por construções ilegais. Na sua opinião, o património pastoril que ainda permanece de pé em Portugal também deveria ser preservado e, se possível, recuperado, para possibilitar o desenvolvimento local. Nesse sentido, adiantou, está a tentar com que seja feita uma candidatura ao programa Interreg III para serem recuperados estes espaços transfronteiriços.

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