Este tempo também é de Constança Capdeville

Constança Capdeville foi uma artista de coisas irrepetíveis. Mas amanhã e depois, em Lisboa,
o ColecViva junta-se mais uma vez para recriar uma obra sua. Nuno Vieira de Almeida
contou-nos como e porquê: porque não nos podemos dar ao luxo de a esquecer

a "Detesto homenagens bacocas, descerrar lápides. Não é nada disso." As palavras são de Nuno Vieira de Almeida, que propôs ao São Luiz uma coisa bem diferente: dar a conhecer uma peça de teatro-música da compositora Constança Capdeville, recriando-a, para que se compreenda que o seu legado está bem vivo. Nuno Vieira de Almeida é pianista e o grande impulsionador do projecto que será feito amanhã e depois no Jardim de Inverno do teatro lisboeta. O espectáculo Este tempo também é dela volta a reunir o ColecViva, o grupo de teatro e música fundado por Constança Capdeville nos anos 80. E propõe não só uma recriação de Wom Wom Cathy, uma peça de "teatro-música" (como lhe chamava a compositora), mas também uma obra nova de Pedro Moreira inspirada no "imaginário" de Constança Capdeville. "Pensei que devia haver uma primeira parte que pudesse contrabalançar ou partir do imaginário da Constança e fazer uma coisa diferente em relação ao teatro musical dela", explica-nos o director do projecto. Para Nuno Vieira de Almeida, o convite a Pedro Moreira, mais conhecido pelo seu trabalho na área do jazz, teve a ver com o facto de ser um compositor com uma linguagem e uma formação sólida: "Pensei que ele podia não colidir com a Constança mas usar muita da liberdade dela. Os clichés que ela usa de maneira irónica, o Pedro Moreira também os vai buscar. Mas sem tentar copiar."
O ponto de partida é Wom Wom Cathy, uma peça construída fundamentalmente a partir de técnicas de colagem, que "tem citações da Bohème e até de Monteverdi", diz Nuno Vieira de Almeida. Ele andou em busca da gravação do teatro musical feito em 1990 no Teatro de São Carlos: "Lá consegui perceber que havia uma gravação completa do Wom Wom Cathy. E como eu e alguns outros membros do ColecViva também tínhamos o guião, era possível reconstituir a peça", diz Nuno Vieira de Almeida. O vídeo era fundamental porque era o único registo de um teatro musical efémero: "A Constança não mantinha as coisas rígidas, estava sempre a adaptar e a mudar", conta o pianista que foi seu aluno e conviveu intensamente com ela também depois no ColecViva ("Fui substituir a Olga Prats, ela é que era a pianista fundadora do grupo, convém não esquecer", diz). Para Nuno Vieira de Almeida, uma das razões essenciais desta criação/recriação tem a ver com preservar uma memória: "Era injusto e incrível como é que um país tão pequeno e com tão pouca gente como Portugal se podia dar ao luxo de esquecer uma figura como a Constança Capdeville. Ela devia ser homenageada todos os dias." Vieira de Almeida não esquece a figura da pedagoga e da música que conheceu bem: "Era uma pessoa frágil, pequenina, e se era preciso dizer alguma brutalidade ela dizia sem a menor hesitação. Irradiava simpatia e talvez fragilidade - mas era uma pessoa bastante sólida. Podia ser um chaimite, na verdade." A comparação com o blindado ligeiro que o 25 de Abril de 1974 transformou em símbolo de libertação parece fazer sentido para a inconformista pesquisadora dos sons, das palavras e dos gestos que foi Constança Capdeville, artista sempre interessada no que lhe parecia novo e livre.
Nascida em Barcelona em 1937, ela viveu em Portugal desde 1951, estudou piano e composição e foi bolseira da Gulbenkian no fim dos anos 60. "Ela fez coisas na altura bastante revolucionárias", diz Nuno Vieira de Almeida, "não tinha papas na língua, e até chocou alguns meios mais conservadores. Aliás, ela gostava imenso. Nunca lhe interessou o lado muito limpinho da prática musical, mas sim uma espécie de trabalho contínuo sobre a matéria musical."
Em Wom Wom Cathy homenageia-se também Cathy Berberian, meio-soprano que Constança Capdeville muito admirava. Como ela, uma artista com "grande exigência técnica mas com uma ironia e um lado lúdico", diz Vieira de Almeida. Ele avisa que a obra "é um bocado louca, mas ao mesmo tempo muito melancólica". Amanhã e depois no São Luiz, pode conhecer-se um pouco mais desta luminosa "Constança", para Nuno Vieira de Almeida "uma figura fundamental da música do século XX em Portugal". Não nos podemos dar ao luxo de esquecer a sua liberdade.

Sugerir correcção