O melhor do teatro e da dança em 2023

As melhores peças de teatro e dança de 2023. Escolhas de Gonçalo Frota, Inês Nadais e Mariana Duarte.

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Teatro

10

Moria de Mario Veja. Una Hora Menos | Teatro Carlos Alberto (FITEI)

Moria de Mario Veja. Una Hora Menos | Teatro Carlos Alberto (FITEI)

O espanhol Mario Vega mete-nos numa tenda para nos lembrar das tendas de Moria, um dos maiores campos de refugiados da Europa. A partir dos relatos de três refugiadas, abre um dos muitos alçapões com os podres da Europa, que deixa milhares de pessoas morrer no mar e em prisões a céu aberto. No final, as palmas custam a sair: não há redenção, só desesperança. M.D.


9

Lear de Shakespeare. Teatro da Didascália/Teatro do Bolhão | Encenação de Bruno Martins | Teatro-Cinema de Fafe (Odisseia Nacional)

Lear de Shakespeare. Teatro da Didascália/Teatro do Bolhão | Encenação de Bruno Martins | Teatro-Cinema de Fafe (Odisseia Nacional)

As ideias de herança e de passagem de testemunho que estão no coração desta peça foram o motor, também fora de cena (porque o “mestre” António Capelo e o “discípulo” Bruno Martins trocam de lugar…), de um projecto genuinamente exemplar enquanto celebração em vida do património transgeracional de uma escola de teatro, a Academia Contemporânea do Espectáculo. I.N.


8

A Minha Vitória como Ginasta de Alta Competição de Lígia Soares | Teatro Municipal do Porto — Campo Alegre

A Minha Vitória como Ginasta de Alta Competição de Lígia Soares | Teatro Municipal do Porto — Campo Alegre

Enquanto avançam pelos aparelhos do all-around, duas ginastas discutem a vantagem de uma sobre a outra, dissertam sobre a promessa socialista e a armadilha capitalista, entregam-se a uma competitividade que, no limite, cede lugar à solidariedade. Apontando a escrita para cada um dos aparelhos, Lígia Soares disserta acerca da crueldade do mundo para lá do último salto. G.F.


7

Antígona na Amazónia, a partir de Sófocles de NTGent & Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra | Encenação de Milo Rau | Culturgest (Alkantara Festival)

Antígona na Amazónia, a partir de Sófocles de NTGent & Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra | Encenação de Milo Rau | Culturgest (Alkantara Festival)

Um encenador marxista com acesso premium aos valores de produção da Europa endinheirada e um movimento social que desde 1984 agita a bandeira da reforma agrária no maior país da América do Sul: tanto nos meios como nos fins, a aliança Milo Rau-MST foi muito além do modus operandi do teatro burguês, reivindicando, como os gregos, o espelhamento entre a plateia e a polis. I.N.


6

Our Empire de Hotel Modern & Arthur Sauer | Teatro Municipal do Porto — Campo Alegre (FIMP)

Our Empire de Hotel Modern & Arthur Sauer | Teatro Municipal do Porto — Campo Alegre (FIMP)

Retrato dos capítulos iniciais da colonização da Indonésia pelos Países Baixos, num dispositivo entre o teatro de marionetas e o cinema em que o público assiste em directo à construção do espectáculo. Uma lição de história e um galvanizante exercício de imaginação, minúcia e argúcia; prova de que no teatro quase tudo é possível sem grandes exercícios de maquilhagem: de efeitos especiais com aipo a cenários de guerra com marionetas em miniatura. M.D.


5

Strikethrough (Tachado) de Va-Bene Elikem Fiatsi | CRL (Quilombo.trema!)

Strikethrough (Tachado) de Va-Bene Elikem Fiatsi | CRL (Quilombo.trema!)

Performance de visceralidade silenciosa, mas arrepiante, de uma artista trans ganesa que continua de pé, a existir e a resistir, num país onde se criminaliza as pessoas queer e numa Europa onde o racismo está ao virar da esquina. Va-Bene mostra-nos a violência por trás de um passaporte que não corresponde à sua identidade de género: vemos, em vídeo, as muitas salas de aeroportos onde todo o seu corpo é visto como uma ameaça e tocado como propriedade alheia, do cabelo aos sutiãs almofadados. Em palco, é ela que se despe a si própria, num ritual de afirmação e ressignificação. M.D.


4

Orlando et Mikael / L’Aventure Invisible de Marcus Lindeen | Teatro do Bairro Alto (BoCA)

Orlando et Mikael / L’Aventure Invisible de Marcus Lindeen | Teatro do Bairro Alto (BoCA)

Apresentadas numa double bill no TBA, as duas peças que o encenador sueco (com a colaboração de Marianne Ségol-Samoy) mostrou em Lisboa são dois exemplos extraordinários de como o teatro pode ser um lugar de escuta, de intimidade e de curiosidade pelo/a outro/a. O público senta-se ao lado dos intérpretes e é hipnotizado por demandas pessoais em busca da identidade. G.F.


3

Hamlet, a partir de Shakespeare de Teatro La Plaza | Encenação de Chela de Ferrari | Teatro Nacional São João (FITEI)

Hamlet, a partir de Shakespeare de Teatro La Plaza | Encenação de Chela de Ferrari | Teatro Nacional São João (FITEI)

Mais de 400 anos depois, vimos o mais seminal dos textos de Shakespeare (ou será de todo o teatro ocidental?) a flamejar de novo em toda a sua inesgotável potência num espectáculo festivo, mas profundamente assertivo, calibrado pelas angústias existenciais de oito actores neurodiversos, a maioria com síndrome de Down – e eis que ser ou não ser passou a ser outra questão. I.N.


2

A Omissão da Família Coleman de Claudio Tolcachir. Artistas Unidos | Encenação de Pedro Carraca | Teatro da Politécnica

A Omissão da Família Coleman de Claudio Tolcachir. Artistas Unidos | Encenação de Pedro Carraca | Teatro da Politécnica

Há amor e ódio entre os Coleman, e há uma família agarrada como pode à sobrevivência. Escrita (primorosamente) por Claudio Tolcachir, esta é uma família que tanto se ampara quanto tenta criar hipóteses de fuga. Na sóbria encenação de Pedro Carraca, os dois lugares em que a peça decorre (a casa e um quarto de hospital) são dois alçapões cheios de segredos e eventuais pistas falsas. Seguimos os Coleman, aproximamo-nos deles e, no entanto, as certezas nunca solidificam. Como se cada verdade, assim que a tentamos agarrar, se desfizesse de imediato. G.F.


1

Blackface de Marco Mendonça | Teatro do Bairro Alto (Alkantara Festival)

Blackface de Marco Mendonça | Teatro do Bairro Alto (Alkantara Festival)

Num dos teasers de promoção a Blackface, Marco Mendonça era o protagonista de um anúncio em vídeo de uma fragrância chamada Jungle Fever – um perfume “for mixed men only” que prometia colocá-lo em contacto com as suas raízes africanas. Era um pequeno vislumbre do filão de clichés, mais ou menos sofisticados, acerca daquilo que significa ser negro – explorado mais a fundo num outro vídeo em que o actor e criador surge como funcionário do call center da Linha de Apoio ao Racista.

Blackface, primeiro espectáculo que Mendonça cria a solo, dialoga com essas várias formas de estigmatização e de caricatura da população negra, tomando como ponto de partida uma prática que servia, antes de mais, para ridicularizar, menorizar e achincalhar. Porque o blackface era a cara pintada de preto, sim, mas também a imitação de sotaques, a construção frásica truncada, as situações retratadas por aqueles a quem parecia natural rir às custas de um grupo historicamente escravizado e discriminado. Todo um programa de desumanização mascarado de humor.

Marco Mendonça recorre a essa mesma ferramenta do humor para construir um notável espectáculo que se serve dos códigos da stand-up comedy, do teatro e da música, oferece uma contextualização histórica para o uso grotesco do blackface sem cair em pedagogia fácil, colocando-se a si mesmo no centro do espectáculo. Porque aquilo que Mendonça faz não é apontar o dedo colocando-se de fora. Porque é assim que, com enorme inteligência dramatúrgica, nos mostra que o problema (muito mais amplo do que o blackface) é de todos. G.F.



Dança

10

t u m u l u s de François Chaignaud e Geoffroy Jourdain | Culturgest

t u m u l u s de François Chaignaud e Geoffroy Jourdain | Culturgest

Desviando-se por momentos de um corpo de trabalho fundado no seu próprio corpo, François Chaignaud pôs 13 intérpretes no limbo em que canto e dança se indistinguem e interdeterminam. O resultado é uma peça de uma beleza hipnótica em que vemos materializada a utopia de uma comunidade de vida e de trabalho. I.N.


9

Matxikadu de Lukanu Mpasi | São Luiz Teatro Municipal (Alkantara Festival)

Matxikadu de Lukanu Mpasi | São Luiz Teatro Municipal (Alkantara Festival)

Uma (auto)reflexão e uma desconstrução sobre as imposições e as tensões da masculinidade que enformam as vivências de homens negros da periferia. Numa performance-concerto entre o hip hop, o kuduro e a música tradicional angolana, Mpasi incorpora certos estereótipos e pactos sociais para os ir driblando e sacudindo, instigando-nos também a pensar nos tiques do nosso olhar enquanto espectadores, enquanto cidadãos. M.D.


8

A Colecção do Meu Pai: Uma Tremenda Caminhada de Cláudia Dias | Fórum Municipal do Seixal

A Colecção do Meu Pai: Uma Tremenda Caminhada de Cláudia Dias | Fórum Municipal do Seixal

A partir dos livros do seu pai, Cláudia Dias inicia um novo ciclo. Este primeiro espectáculo tem por referência A Selva, de Ferreira de Castro, pretexto para olhar para trás, para o colonialismo português no Brasil e para o tráfico de escravos, mas também em frente, para a actual escravatura laboral. Uma peça de palavras e gestos afiados. G.F.


7

Versa-vice de Tânia Carvalho | Teatro Municipal do Porto — Rivoli (Festival DDD — Dias da Dança)

Versa-vice de Tânia Carvalho | Teatro Municipal do Porto — Rivoli (Festival DDD — Dias da Dança)

O universo de Tânia Carvalho continua a expandir-se, iluminando (o que pode significar obscurecendo) as twilight zones da existência e da consciência – não necessariamente humanas. Que uma escrita coreográfica tão idiossincrática não asfixie, bem pelo contrário, a personalidade dos intérpretes é apenas um dos prodígios de Versa-vice. I.N.


6

Gust de Francisco Camacho | Teatro Municipal do Porto — Rivoli

Gust de Francisco Camacho | Teatro Municipal do Porto — Rivoli

A remontagem de peças marcantes pode ser um exercício arriscado de saudosismo ou de recuo historicista, mas Gust, a nova versão de Gust9723 (1997), é admiravelmente daqui e de agora, apesar de alguns traços de nostalgia; um espectáculo que faz eco de neuroses e catástrofes do presente, com a crise climática a permitir novas leituras da peça. Pontos extra para o elenco intergeracional, uma feliz conjugação. M.D.


5

Sweat, sweat, sweat (Um conjunto de pequenos afrontamentos) de Sónia Baptista | São Luiz Teatro Municipal (Alkantara Festival)

Sweat, sweat, sweat (Um conjunto de pequenos afrontamentos) de Sónia Baptista | São Luiz Teatro Municipal (Alkantara Festival)

Com muito despudor, mas sobretudo com muita graça, Sónia Baptista inscreveu a menopausa no repertório das artes performativas portuguesas. O mais recente capítulo de uma odisseia autobiográfica que já a levara a abeirar-se de outros temas, digamos, intocáveis (a depressão, em Triste in English from Spanish) é um portento de imaginação. I.N.


4

Profético (Nós Já Nascemos) de Nadia Beugré | Culturgest (Alkantara Festival)

Profético (Nós Já Nascemos) de Nadia Beugré | Culturgest (Alkantara Festival)

Entre o salão de cabeleireiro a céu aberto e o bar-discoteca, entre as vidas escondidas de dia e as existências plenas à noite, entre o medo da perseguição e a euforia sem julgamento. Profético, a peça que a coreógrafa costa-marfinense criou com a comunidade trans de Abidjan, é um lugar de cuidado comunitário e de liberdade. G.F.


3

Por Motivo de Força Maior de Teresa Silva | Teatro do Bairro Alto

Por Motivo de Força Maior de Teresa Silva | Teatro do Bairro Alto

Teresa Silva convoca-nos para um palco em que estranheza e familiaridade coexistem, baralhando os códigos e questionando de forma sistemática lugares e objectos do universo doméstico. Um “e se” permanente, um olhar desconcertante e espantado que parece (re)descobrir o mundo a cada segundo. G.F.


2

Encantado de Lia Rodrigues | Culturgest

Encantado de Lia Rodrigues | Culturgest

A veterana coreógrafa brasileira regressou aos palcos portugueses com uma criação em estado de graça fundada na potência do verbo “esperançar”: uma emocionante e transbordante cápsula das agruras da travessia da pandemia num país em que ela foi exacerbadamente mortífera, uma exuberante manifestação de fé no manancial de passados, presentes e futuros que fervilha, por vezes tragicamente, nas veias do Brasil. Ultrapassado o capítulo Bolsonaro, os aplausos no final das apresentações em Lisboa e no Porto soaram a alívio e a euforia. I.N.


1

Feijoada de Calixto Neto | Teatro Municipal do Porto — Rivoli

Feijoada de Calixto Neto | Teatro Municipal do Porto — Rivoli

Espalham-se folhas de louro pelo chão. Músicos e bailarinos, vestidos de branco, põem-se a postos. O palco evoca um terreiro de candomblé, espaço de resistência ancestral da população afro-brasileira. “Os tempos novos exigem respostas, e nós queremos saber quem cortou as raízes, quem amolou a faca”, introduz Calixto Neto, ao mesmo tempo que um dos músicos começa a tocar prato-e-faca, instrumento primevo do samba, e a cozinheira Helena dos Santos Correia corta a carne para a feijoada que irá ser servida no final.

A partir de símbolos da identidade nacional brasileira, Feijoada questiona como eles surgiram. Quem teve o direito de escrever a história do país, à custa de quê, à custa de quem, com quantos protagonistas rasurados ou deixados na beira do prato?

Este espectáculo-roda de samba é especial no modo como desdobra a história sem cair em lugares-comuns e em lógicas dramatúrgicas já gastas, operando uma reescrita da mesma, numa conversa dançada e partilhada com o público. No ponto certo, há o conforto de celebrar em conjunto aquilo que se é hoje, estes corpos desejantes, estes corpos com coração ao alto; mas também o desconforto de olhar de frente para as muitas camadas do colonialismo português que Calixto Neto e Ana Laura Nascimento (lesionada, porém arrasando) trazem para dentro do palco, juntamente com o angolano Gio Lourenço e a luso-brasileira Wura Moraes. No final, ficamos a acreditar que um outro futuro é possível. M.D.