O calvário do pecador Andreotti

choque@sentença.itA sentença do tribunal de Perugia que condenou Giulio Andreotti, sete vezes primeiro-ministro de Itália, a uma pena de 24 anos de prisão, produziu um efeito de choque e alarme nos cidadãos italianos. Nenhuma pessoa, de direita ou de esquerda, gosta de saber que foi governado, num regime baseado sufrágio universal, por um criminoso, cúmplice de assassínio e ligado à Mafia. Mesmo em Itália, onde, ao longo das décadas de 80 e 90, a realidade, por vezes, ultrapassou a ficção em revelações, julgamentos e prisões.A Igreja Católica saiu da sua reserva política para afirmar pela voz do cardeal Angelini que o sofrimento de Andreotti se assemelha ao calvário de Jesus Cristo. O mundo político italiano manifestou o seu espanto quase em uníssono, da direita à esquerda, da Força Itália, de Berlusconi, à Refundação Comunista, de Fausto Bertinotti. A surpresa explica-se porque Andreotti, o "inoxidável" (cognome popular), fora absolvido, em primeira instância, em Perugia, da acusação de ser o "mandante" do assassínio do jornalista Mino Pecorelli, figura de reputação duvidosa (suspeito de fazer chantagem com informações), e, num tribunal de Palermo, foi igualmente ilibado de associação criminosa com a Mafia. O antigo presidente do Conselho de Ministros parecia estar na melhor via para a reabilitação política, após um comportamento exemplar, de humilde paciência, durante inúmeras audiências, sem perder nenhuma ocasião para reafirmar confiança na justiça.Neste contexto e no âmbito da polémica entre as instituições políticas e judiciárias, as condenações de Andreotti e do chefe mafioso Gaetano Badamenti, preso nos Estados Unidos, enquanto foram absolvidos o alegado intermediátio, o ex-magistrado Vitalone e os presumíveis executantes do assassínio, La Barbera e Carminata, foram causa de estupefacção. Receia-se que, paradoxalmente, a sentença do tribunal de Perugia, possa fazer o jogo do Governo de direita que não hesita em utilizar o poder executivo para se proteger nos processos em curso contra Berlusconi, as suas empresas e os seus homens de confiança, reforçando os mecanismos de subordinação ao poder executivo dos tribunais e do ministério público.polémica@jurídica.itComo se explica, então, a flagrante discrepância entre a sentença de primeira instância, em que Andreotti foi absolvido, e a decisão do tribunal de Perugia, que o condena a 24 anos de prisão? A resposta a esta questão é necessariamente especulativa, porque a fundamentação da sentença só será divulgado dentro de 90 dias. Mas assinala-se, desde logo, que a condenação foi decidida num tribunal com júri, ao contrário do que sucedera no primeiro julgamento. "O Tribunal de Perugia - escreve Eugenio Scalfari, em "La Repubblica" - era composto, na sua maioria por jurados populares, não togados. Enquanto o tribunal que tinha absolvido Andreotti em primeira instância era formado inteiramente por juízes de toga. Habitualmente os jurados populares são mais sensíveis ao mérito dos factos e à imagem que fazem dos acusados e menos atentos, porque não são especialistas, às questões de legalidade formal. Reflectem de qualquer modo o sentir comum. Se isso será um bem ou um mal, não sei, mas é, sem dúvida, um dado de facto"...Essa questão é tanto mais relevante quanto é sabido que, nesta matéria, prossegue o debate jurídico sobre um conjunto de conceitos criados pelo juiz Giovanni Falcone (mais tarde, assassinado) e pelos seus pares do tribunal de Palermo. Esse é, designadamente, o caso do valor de prova a atribuir (ou não) aos depoimentos dos chamados "arrependidos" ou do delito de "colaboração externa com organização mafiosa", destinado, este último, a criminalizar as relações secretas entre os dirigentes e membros da Mafia e os seus interlocutores nas organizações políticas legais. As anteriores absolvições de Andreotti, por insuficiência de provas, significavam que a jurisprudência estabelecida por Falcone e outros juizes envolvidos na operação "Mani Puliti", estava a ser abandonada. As malhas dos códigos penais não são suficientemente apertadas para detectar as formas de conivência possíveis entre o mundo político e as organizações mafiosas. Mas o risco que se corre em alterá-las, através da interpretação das leis, consiste em diminuir as garantias dos cidadãos ou, no caso dos "arrependidos", em conferir credibilidade a declarações proferidas (ou extorquidas) em negociações de bastidores.denúncia@mafioso.it Giulio Andreotti foi condenado, com base em acusações do mafioso arrependido Tommaso Bucetta, de ter sido o "mandante" do assassínio do jornalista Pecorelli que teria ameaçado fazer revelações relativas ao "caso Aldo Moro" (1978), dirigente da Democracia Cristã, raptado e, depois, assassinado, pelas Brigadas Vermelhas, organização terrorista de extrema-esquerda. As principais forças políticas italianas - à excepção do PSI, de Craxi, e da extrema-esquerda legal - opuseram-se às negociações com as Brigadas com vista a libertar Aldo Moro, antigo primeiro-ministro e provável candidato a Presidente da República, através da troca de prisioneiros. Os apelos de Aldo Moro com vista a uma solução negociada foram ignorados pelos seus antigos companheiros, com destaque para Andreotti, que não hesitaram em considerar meras falsificações as cartas do prisioneiro das Brigadas, divulgadas na imprensa da época, apesar de, na opinião de diversos peritos, a caligrafia, o estilo e a argumentação apontarem no sentido da sua autenticidade. Não seria, por isso, inverosímil que o antigo homem forte da DC tivesse deixado, enquanto legado testamentário, informações comprometedoras para os seus antigos amigos. Mas daí a concluir Andreotti "ordenou" um crime de homicídio vai uma distância considerável. pecados@veniais.it Aos 84 anos de idade, Giulio Andreotti não corre o risco de passar na prisão o resto dos seus dias. Além disso, por ser senador vitalício, goza de imunidade. O que está em jogo é a reputação do político que, após a leitura da sentença, reafirmou confiança na Justiça. Vai recorrer para o Supremo e aguardar o resultado. Para já, confortam-no a solidariedade de boa parte da "classe política", em especial do Presidente da República, Ciampi, que se considerou profundamente "perturbado" pela sentença de Perugia. A família de Aldo Moro, que se recusou, em cumprimento de disposições testamentárias, a permitir a presença dos altos dirigentes da Democracia Cristã no funeral do antigo primeiro-ministro assinado, deve observar, com particular atenção o "calvário" de Giulio Andreotti. Os juizes das Mani Puliti mudaram o sistema político italiano. Do consenso centrista, com a DC entronizada em partido dominante, a Itália transitou, com a mudança do sistema eleitoral, para um regime de alternância entre o centro direita e o centro esquerda. Mas a Segunda República, fundada sobre as ruínas da antiga classe política, é fértil em políticos reciclados da fase anterior. O primeiro-ministro Silvio Berlusconi optou pela política quando lhe faltaram os apoios indispensáveis à prossecução dos seus negócios mediáticos e outros. Esta sentença é mais um lance no braço de ferro entre Silvio Berlusconi e as instituições judiciárias, que defendem a sua autonomia, enquanto o primeiro-ministro procura submetê-las ao controlo governamental. A quase unanimidade nas manifestações de solidariedade ao antigo homem forte da DC indica que Berlusconi já marcou pontos a seu favor. Mas, seja qual for, o resultado definitivo do processo judicial, provavelmente continuaremos sem saber se Andreotti é culpado ou inocente. Por entre as contradições dos tribunais, a dúvida permanecerá, a suspeita ficará para sempre.

Sugerir correcção