Apesar de tudo, move-se

1. As notícias mobilizam constantemente a nossa atenção para outras coisas. Para o comando terrorista que se fez explodir nos arredores de Madrid, antes que tivesse tido tempo para cometer um novo 11 de Março. Para os confrontos entre manifestantes xiitas e as tropas espanholas, em Najaf. Para os corpos calcinados de quatro civis americanos, arrastados nas ruas de Falluja numa orgia de violência que temos dificuldade em entender. A queda do Muro de Berlim, que há apenas 15 anos parecia abrir a porta a todas as esperanças, parece-nos hoje um acontecimento tão longínquo que nem sequer prestamos a devida atenção às suas consequências, por mais positivas que sejam. Foi certamente o caso da cerimónia discreta que decorreu na passada sexta-feira, em Bruxelas, na sede da mais velha, mais sólida e mais eficaz aliança de defesa do mundo. Nove anos depois da dissolução oficial do Pacto de Varsóvia e 13 anos após o fim da União Soviética, a Aliança Atlântica levou pacífica e democraticamente as suas fronteiras até às fronteiras da Rússia, abrindo as portas a mais quatro países do antigo bloco soviético (Bulgária, Roménia, Eslováquia e Eslovénia) e a três antigas repúblicas da antiga URSS (Estónia, Letónia e Lituânia). A Polónia, República Checa e Hungria tinham já entrado em Março de 1999. Dentro de três semanas, a 1 de Maio próximo, a União Europeia oficializa o maior alargamento da sua história, integrando de uma só vez mais 10 países, oito dos quais estiveram sob domínio soviético até o início da última década do século XX. As novas fronteiras das duas organizações que venceram a guerra-fria e que garantiram a democracia, a paz e a prosperidade da Europa Ocidental são praticamente coincidentes. O seu alargamento obedece à mesma lógica de inclusão e visa os mesmos objectivos políticos: a reconciliação e a unificação da Europa em tornos dos valores da democracia, da liberdade, da tolerância, da paz e da segurança. O facto significa, também, que a União Europeia e a NATO conseguiram sobreviver à radical mudança das condições geopolíticas que tinham ditado a sua própria existência, adaptando-se às novas realidades europeias e mundiais sem perder a sua natureza política fundamental de união de democracias. Um êxito a todos os títulos notável, realizado num curtíssimo espaço de tempo e através das vicissitudes de um mundo conturbado. Uma fonte de ensinamentos para o futuro, se a Europa e os Estados Unidos não quiserem perder à escala mundial a batalha que venceram, apesar de tudo, à escala europeia. 2. Não foram fáceis os caminhos percorridos pelas duas organizações. A Aliança Atlântica, que venceu a guerra-fria sem disparar um único tiro, quase soçobrou ao tremendo desafio da guerra nos Balcãs. Mas foi também nos Balcãs que encontrou a sua nova vocação positiva de "exportadora de segurança", agora em nome de um novo paradigma que começou a emergir do fim da guerra-fria e que tornou (espera-se) impensável o genocídio e a limpeza étnica feitos de novo em nome do nacionalismo extremo. É certo que a transformação da Aliança teve um preço trágico: custou milhares de mortos que poderiam ter sido tão facilmente evitados. Em Srbrenica, à distância de menos de três horas de voo da sua sede, em Bruxelas, e perante o olhar de soldados europeus; ou no Ruanda, a alguns milhares de quilómetros, mas aparentemente a anos-luz da sua consciência, onde há precisamente dez anos foi cometido perante a passividade ocidental o genocídio que o Ocidente tinha jurado irrepetível. São coisas que é importante nunca esquecer. A União Europeia teve de vencer a pesada inércia de um modelo criado para integrar as ricas e estáveis democracias da metade ocidental da Europa à sombra tranquilizadora da protecção americana, para ir ao encontro das suas novas responsabilidades europeias e internacionais. A História não progride, todavia, em linha recta. A Europa unifica-se mais dividida que nunca quanto ao seu papel no mundo. A NATO alarga-se no momento em que a aliança transatlântica que está na sua génese atravessa a sua mais grave crise de sempre. Os desafios não são menores do que os que venceram na década passada. Estiveram todos presentes no momento em que, em Bruxelas, foram hasteadas as sete bandeiras dos recém-chegados. Estarão presentes quando os Vinte Cinco celebrarem em Dublin, dentro de poucos dias, a nova e grande Europa. 4. O 11 de Setembro veio reabrir as feridas que a Aliança pensava fechadas ao encontrar nos Balcãs uma nova "justificação positiva" e uma nova legitimação aos olhos da opinião pública europeia e americana. A forma como Washington dispensou sumariamente os serviços da NATO, mesmo quando a Aliança evocou, pela primeira vez na sua história, o artigo 5º do Tratado de Washington, reavivou entre os aliados europeus o fantasma da irrelevância da organização aos olhos da América. A nova doutrina de defesa americana, ao reduzir a importância estratégica das alianças permanentes, ajudou a alimentar estes receios. Finalmente, a crise iraquiana e a intervenção militar contra o regime de Saddam Hussein, decidida e imposta unilateralmente pela administração de George W. Bush aos aliados, voltaram a dividir profundamente a Aliança e a pôr à prova a sua existência futura.O Afeganistão permitiu à NATO reassumir o seu papel de "exportadora de segurança" ao serviço das Nações Unidas. Em Cabul, são as tropas da NATO, lideradas actualmente pela Alemanha, que constituem a espinha dorsal da força de estabilização do país. Mas é no Iraque que a aliança transatlântica vai de novo enfrentar a sua prova de vida. Na sexta-feira passada, Colin Powell foi a Bruxelas apelar a uma intervenção colectiva da NATO na estabilização do Iraque após a transferência de soberania, prevista para 30 de Junho. O apelo de Powell é o reconhecimento implícito de que os EUA, confrontados com o caos sem fim à vista no Iraque e com a dúvida interna sobre a legitimidade e a utilidade da guerra, voltam a precisar de aliados e das organizações multilaterais que não hesitaram em pôr em causa com a sua aventura iraquiana. Entre os aliados europeus, sobretudo entre aqueles que pesam, a resposta ao apelo de Washington está longe de ser consensual. Mas à Europa também já não resta todo o tempo do mundo para vencer a sua esquizofrenia em relação à NATO e à relação transatlântica, sob pena de ver os seus receios de um descomprometimento definitivo da América da segurança europeia transformado em realidade e a Aliança Atlântica condenada a um papel irrelevante na segurança mundial O Iraque será decisivo para moldar o futuro das duas organizações que levaram a bom porto a unificação democrática e pacífica da Europa. De novo, o destino de ambas está intimamente ligado. Que ambas saibam aprender alguma coisa com o seu passado recente e com a celebração da unidade europeia. Ontem, em Bruxelas, amanhã, em Dublin.

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