Uma catedral da arte contemporânea

Chamam-lhe "A Catedral do Cool", "A Maior Galeria de Arte Moderna no Mundo Inteiro" ou "A Grande Revolução na Cultura Britânica". É a "Tate Modern": o maior museu dedicado à arte do século XX abre hoje ao público, em Londres, com 600 obras em exposição. As entradas são gratuitas.

Longe das confusões e da polémica que rodearam os mega-projectos mais recentes (como o Dome, o novo parlamento da Escócia ou a milionária renovação da Royal Opera House, por exemplo), a nova Tate, ou "Tate Modern", conseguiu a proeza de uma quase unanimidade nacional. Jornais e críticos de arte repetem títulos como "A Catedral do Cool", "A Maior Galeria de Arte Moderna no Mundo Inteiro" ou "A Grande Revolução na Cultura Britânica". Nicholas Serota - agora "Sir" Nicholas Serota -, o grande motor deste projecto gigantesco, desde 1995, foi abençoado publicamente por ter cumprido prazos e orçamentos e, sobretudo, por ter mantido a Tate longe dos escândalos. "A Tate Modern não será, apenas, o símbolo mais grandioso da cidade de Londres no século XXI", afirmou o ministro da Cultura, Chris Smith, numa apresentação do museu à imprensa internacional. "Será, além disso, uma verdadeira 'jóia da coroa' da vida cultural do país". A rainha Isabel, de vestido e chapéu verde clarinho, inaugurou oficialmente a Tate Modern durante a manhã de ontem e esforçou-se por manter um sorriso de interesse perante os Rothkos, Beuys, Pollocks ou Giacomettis que povoam as paredes e as salas. À noite houve música, dança e fogo-de-artifício no final de uma festa para dois mil convidados, onde se incluíam grandes nomes do mundo da arte, da literatura e da música do mundo inteiro (de acordo com os tablóides, os convites para esta "festa do ano" circulavam no mercado negro a mais de mil libras - 342 contos). Às 9h50 de hoje, finalmente, o maior museu do mundo dedicado à arte do século XX abrirá, pela primeira vez, ao público. A maior parte das 600 obras em exposição passaram os últimos anos escondidas e encaixotadas nos armazéns da Galeria Tate, em Millbank, na margem norte do rio Tamisa. Iniciada no final do século XIX com a fortuna e com a colecção de quadros do magnata do açúcar Henry Tate, a galeria dedicou-se, originariamente, a reunir a melhor arte britânica produzida após o século XVI. Em 1916, a Tate estendeu os seus objectivos e começou a coleccionar, igualmente, arte moderna estrangeira. Os primeiros anos foram tímidos, mas as aquisições, nas últimas duas décadas, fizeram duplicar o número de peças do século XX. De tal forma que a colecção de arte moderna e contemporânea da Tate Gallery é geralmente considerada, hoje em dia, como uma das três ou quatro mais importantes do mundo - a par do MoMA e do museu Guggenheim, em Nova Iorque, ou do Musée National d'Art Moderne, no Centro Georges-Pompidou de Paris. A falta de espaço disponível no palácio oitocentista de Millbank obrigava a uma irritante rotatividade das obras por Londres, Liverpool e St. Ives, na Cornualha, onde a Tate tem extensões. Foi esta política do hoje-podes-admirar-este-quadro-amanhã-talvez-não que despoletou o projecto de um grande museu nacional de arte moderna e contemporânea, que nunca existiu na capital britânica.O local escolhido não poderia ser mais espectacular: a antiga central eléctrica de Bankside, na margem sul do Tamisa. Desenhada por Sir Giles Gilbert Scott, o arquitecto da ponte de Waterloo e da catedral de Liverpool (e, já agora, das famosas cabinas telefónicas vermelhas espalhadas pelo país), a central, gigantesca, foi construída entre 1947 e 1963. Esta verdadeira montanha de tijolo, monolítica, comprida e escura, com uma enorme chaminé, foi agora reconvertida de acordo com o projecto dos arquitectos suíços Herzog e de Meuron, seleccionado entre os 146 que se apresentaram a concurso internacional.A entrada no museu faz-se através de uma longa rampa que desemboca na sala das turbinas, onde antigamente se gerava a electricidade que alimentava os candeeiros das ruas da capital e as torradeiras e os televisores a preto e branco das casas dos londrinos, nas décadas de 50 e 60. A sala, ou "a rua", na expressão de Lars Nittve, o director do museu, estende-se por uma área sem fim, com 155 metros de comprimento e 35 de altura, onde está exposta a aranha descomunal e outras esculturas de Louise Bourgeois. O museu prolonga-se, depois, por mais de 80 galerias, meias-galerias, salas ou ante-câmaras, distribuídas por três níveis e quase sempre viradas para o rio. Existem ainda cafés, um auditório, centros educativos, a maior livraria de arte de Londres e um restaurante panorâmico, com uma vista espectacular sobre a cidade. Herzog/de Meuron criaram uma enorme caixa, leve e arejada, no topo do edifício, que espalha a luz natural por todo o museu. Está previsto o aproveitamento, no futuro, da chaminé de 99 metros e dos antigos reservatórios de petróleo, no subsolo. Ao contrário da maioria dos museus, as peças não estão arrumadas por ordem cronológica, por autor ou por qualquer "ismo" (surrealismo, impressionismo, futurismo, etc.). Existem algumas, poucas, salas dedicadas a um único artista, como Gabo ou Beuys. Mas o grosso da arte exposta na Tate Modern está agrupado em quatro áreas temáticas, com títulos como "História-Memória-Sociedade" ou "Natureza Morta-Objecto-Vida Real". O efeito, surpreendente e, por vezes, engraçado, reúne na mesma sala, por exemplo, Dali e Picasso, Mondrian ao lado de Gilbert e George, ou os nenúfares de Monet pegados com o preto e branco das pedras de Richard Long. Prevê-se que este museu, que custou 45 milhões de contos - provenientes, no seu grosso, das receitas do totoloto -, receberá cerca de dois milhões visitantes por ano (as entradas são gratuitas). Com o dobro do espaço da Tate do outro lado do rio, agora reduzida à arte britânica e rebaptizada "Tate Britain", o museu é certamente o maior do mundo de arte moderna e contemporânea. Mas será o melhor? "O gigantismo do espaço é frio e intimidatório. Lembrou-me Auschwitz", escreveu o exigente Brian Sewell, um dos críticos de arte mais respeitados da Inglaterra. "E a colecção tem lacunas graves, que demonstram a falta de visão dos directores do passado". Iwona Blazwick, uma das curadoras da Tate Modern, não discute: "O museu tem imensos pontos fortes. E alguns pontos fracos", admitiu ela ao PÚBLICO, durante a visita oferecida aos representantes da imprensa estrangeira. "Há lacunas. Faltam obras de artistas (mulheres) do princípio do século XX, por exemplo. Bem como arte do período entre guerras. Alguém tinha reparado?". Ninguém tinha.

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