ANTÓNIO RAMOS ROSA "Como é que um velho pode nascer?"

Generosidade foi a palavra que mais se ouviu para caracterizar António Ramos Rosa, poeta que acaba de fazer 82 anos e recebeu uma homenagem. Tem dezenas de obras publicadas, foi tradutor
e critíco literário. Auto-retrato? Está tudo na poesia. Por Joana Gorjão Henriques

Mesmo fisicamente fragilizado, António Ramos Rosa, 82 anos, foi na terça-feira ao Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Foi para festejar o seu aniversário e participar numa homenagem, organizada pela revista Textos e Pretextos, do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras de Lisboa, que lhe dedica a sua nona edição.Os convidados da mesa - os poetas João Rui de Sousa, Pedro Mexia, Gastão Cruz e Casimiro de Brito e o escritor Urbano Tavares Rodrigues - traçaram-lhe o retrato. Ramos Rosa ouviu-os em silêncio. E depois, para um plateia a abarrotar, começou por uma pergunta: "Como é que um velho pode nascer?" Um artifício para perguntar: "Como é que eu com esta idade posso nascer?"
Pela poesia, responde, no dia seguinte, numa curta conversa por telefone.
Pode estar frágil fisicamente mas mantém vigor para se insurgir contra a "ditadura da banalidade". Porque foi a banalidade que levou algumas pessoas a queixarem-se de que a poesia moderna "é incompreensível", contestou na terça-feira, quando recebeu também a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura (no início do mês recebeu o Prémio de Poesia do PEN Clube Português).
Quando lhe pedimos para fazer o seu auto-retrato, responde que tem pouco a acrescentar ao que foi dito e escrito. "O melhor que posso dizer é que não precisava de fazer qualquer auto-retrato. A minha poesia é o reflexo, é onde se manifesta melhor aquilo que sou. Um poeta não precisaria nunca de fazer uma autobiografia." É que um poeta, explica, "é uma pessoa mais sensível às exigências sociais". E isso está nos seus poemas. Está, por exemplo, indica, em Funcionário cansado. "Sou um funcionário apagado/ um funcionário triste/ a minha alma não acompanha a minha mão". Ter sido funcionário foi "quase pior do que estar preso": "Nunca me adaptei ao emprego que tinha. Na prisão sofri alguma coisa, mas posso dizer que o emprego era um sofrimento."
Foi em 1945 que começou a trabalhar num escritório na Av. da Liberdade, em Lisboa, onde esteve até 1947. Abandonou o emprego dois anos depois, regressou a Faro, onde nasceu, e foi preso pela PIDE por ser considerado um intelectual comunista - ficou três meses preso no Aljube. Funcionário cansado foi escrito após retomar o lugar no escritório em 1949. O poema e os dados biográficos podem ser lidos na Textos e Pretextos, onde há ensaios sobre a obra, testemunhos de amigos, poetas, ensaístas, entrevistas, bibliografia, biografia e uma lista das centenas de obras do autor, entre poesia, traduções, críticas, publicações avulsas.
Demos então a palavra a quem, durante a cerimónia, lhe traçou o retrato, e com quem mais tarde o PÚBLICO falou.

Pedro Mexia poeta e crítico Não conheceu a sua obra na escola nem em casa dos pais: descobriu-o sozinho, em peregrinação pelas livrarias aos 17 anos. Ficou cativado pelo "lado exaltante e exaltado da poesia amorosa, por uma claridade que não é o elemento mais óbvio da poesia portuguesa", contou durante a sessão no D. Maria. E até chegou a fazer imitações. Depois de conhecer a poesia, quis conhecer o poeta. Foi entrevistá-lo para um suplemento juvenil. "Mostrou-se completamente disponível e isso foi muito importante." A sua "generosidade" marcou-o. Comprou todos os livros do autor e duvida que "muita gente o tenha feito". "Para as pessoas da minha geração, a poesia de Ramos Rosa é excessivamente feita de palavras." Mas são palavras que se relacionam com os elementos da realidade. "É um dos poucos poetas que vivem para a poesia."
Gastão Cruz poeta
Gastão Cruz, que também nasceu em Faro e foi seu vizinho durante a infância, sente-se muito ligado a Ramos Rosa. "Acompanhei todo o trabalho, a vida dele. É dos poetas que conheço que mais têm vivido exclusivamente para a poesia." Simples, modesto, generoso, disponível são traços que o distinguem. "Não podemos separar a actividade poética da actividade crítica", acrescenta. "Era um crítico muito exigente." Alguém que pensou sobre o fenómeno poético. "Lutou muito por impor uma ideia de poesia moderna contra as ideias que a condenavam por achá-la incompreensível, por impor uma leitura do fenómeno poético segundo a lógica poética e não segundo a lógica formal e da banalidade, porque está numa perspectiva completamente oposta: a procura de uma densidade e intensidade para a poesia e de um poder e de um peso expressivo para a palavra poética."

João Rui de Sousa poetaJoão Rui de Sousa contou histórias sobre um amigo que conhece há mais de meio século, dos tempos em que o poeta morava numa pensão, vivia de traduções, das ajudas da mãe e de explicações. Falou sobretudo do homem. Da "lealdade, transparência, claridade e generosidade", diz, da sua "inteligência e grande criatividade". "Como poeta destacaria a magnífica novidade que representou quando apareceu: era uma linguagem nova, uma maneira poética realmente liberta de excrescências e de certos cânones já ultrapassados."

Margarida Gil dos Reis, directora "Textos e Pretextos"
Mais uma vez alguém usa a palavra "generosidade". Margarida Gil dos Reis acrescenta: "Curiosamente, é um dos casos em que menos se descola a figura do homem com a do poeta, sendo que essa figura do poeta é também uma figura generosa." Essa generosidade está na criação: são mais de 50 anos de vida literária, com centenas de obras publicadas, "diria quase milhares de poemas dispersos".

Urbano Tavares Rodrigues escritor e crítico
"Deve ter lido mais do que ninguém", diz Urbano Tavares Rodrigues. "Não há poeta francês, espanhol, da América Latina que ele não conheça." Uma paixão que continua: "Creio que até ao último momento da vida o António vai ler e escrever." Descobre na sua poesia "a relação do ser com o conhecimento, com a terra", e uma proximidade "do religioso que não é religiosa". Explica: "Partindo de uma indagação através do erótico, através da fusão com a natureza, ele chega a uma plenitude que está perto da graça. Encontra-se muito na poesia dele uma graça pagã." E não esquece a sua companheira, Agripina Costa Marques. "A Agripina salvou o António. Ele tinha estados depressivos, esteve à beira do suicídio e esta mulher, que tem talento poético, tem-se apagado para ser a grande companheira dele."

Agripina Costa Marques poeta, mulher de Ramos Rosa
"Exagero", diz com um sorriso Agripina Costa Marques, comentando a frase de Urbano Tavares Rodrigues. "Ele é que se salvou a ele próprio, eu só ajudei um bocadinho", diz sentada ao lado do marido. Retrato? "Parece tão evidente que tudo o que se possa acrescentar está a mais." Insistimos. "É uma pessoa singular. Uma coisa que se focou é a generosidade." Deixa no ar um episódio que tem tanto de simbólico como de misterioso: "Eu tive um determinado sonho, estava escrevendo o sonho e ele estava escrevendo um poema. No fim ele leu-me o poema dele. O poema dele tinha muito a ver com o meu sonho." O poema está na fotobiografia de Ana Paula Coutinho Mendes, publicada pela Dom Quixote. "Há uma corrente que passa, pelo facto de duas pessoas estarem juntas. Não vejo nada de extraordinário nisso."
bi
Nome António Ramos Rosa
Profissão Poeta
Idade 82 anos
Mais de 50 anos dedicados exclusivamente à poesia

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