Antes euro-reformista do que euro-exterminador

Desistir de qualquer tipo de alteração e reforma para que o projecto corresponda aos anseios dos cidadãos é entregar a faca e o queijo ao que tanto criticam: aos projectos de ideário neoliberal.

Ouça este artigo
00:00
03:47

A melhor forma de ganhar uma discussão é ser o primeiro a definir os conceitos a utilizar. Circunscrever os limites do debate e fazer com que o adversário use os termos que pretendemos inquina à partida o campo e é meio caminho andado para vencer. É um velho truque, mas de sucesso comprovado. Por isso, infelizmente, torna-se comum em muitas discussões, mas particularmente evidente no debate sobre a Europa e as suas instituições.

A divisão do mundo em maniqueísmos simples é útil para descomplicar realidades emaranhadas. As dicotomias que utilizamos — esquerda vs. direita, bom vs. mau, eurocéptico vs. europeísta — são vantajosas para situarmos o plano da discussão e criarmos um quadro mental compreensível para todos. O revés disto é que muitos aproveitam estas simplificações argumentativas para minar o debate, na maioria dos casos, através de uma falácia de falsa escolha: ou se é uma coisa ou se é outra, ignorando a multitude de espaços intermédios entre o preto e o branco. No caso europeu, aparentemente, inovou-se. Antes, dizia-se que ou se era eurocéptico ou europeísta. Agora, aparentemente, ou se é eurocéptico ou euro-ingénuo.

A colocação destes termos não é inocente: se de um lado temos uma posição ingénua, um qualificativo que tenta infantilizar o adversário, do outro temos uma atitude aparentemente séria e sóbria. Aliás, a justificação para o uso do termo céptico neste prisma é tentar passar uma mensagem de maturidade e ponderação. Um dos principais problemas desta divisão é que oculta a verdadeira concepção do termo “céptico”: na realidade, aproxima-se muito mais de uma posição “anti” do que propriamente da definição correcta do termo “céptico” (de dúvida). Basta analisar a proposição de quem se define assim: dizem que a União Europeia e as suas múltiplas instituições aproximam-se da encarnação do mal, que são a corporização de um projecto neoliberal, que não se coadunam com os interesses dos cidadãos e, particularmente mais relevante, que é impossível alterar qualquer fundamento da sua composição e que, por isso, não vale a pena fazer o quer que seja para além do seu desmantelamento. Esta posição não é de mera dúvida ou de crítica (que sem dúvida o projecto europeu merece) — é de liquidação. E, por isso, o termo céptico não é acertado — talvez euro-exterminador seja mais correcto.

Se dos projectos nacionalistas de extrema-direita isto não é surpreendente, é com pena que observo o mesmo decaimento à esquerda. A esquerda sempre pensou, desenhou e construiu a união dos povos europeus. Proudhon sonhou com uma Europa Federal. Gramsci deu grande parte da vida pela coesão entre os povos europeus e foi precursor do eurocomunismo. Spinelli lutou e construiu uma Europa mais unida e livre. Desistir de qualquer tipo de alteração e reforma para que o projecto corresponda aos anseios dos cidadãos é entregar a faca e o queijo ao que tanto criticam: aos projectos de ideário neoliberal. Desistir da Europa é um erro.

Acusar quem tenta reformar as instituições europeias de ser conivente com um projecto neoliberal é, no mínimo, risível, pois é quem desiste de o fazer que, em última instância, é servil perante ele. Baixar os braços, impedir a actuação dos restantes e dizer que é impossível fazer o quer que seja é entregar a vitória de bandeja a quem tanto criticam. Dar o ouro ao bandido não me parece a forma mais inteligente de fazer política e, sobretudo, de resolver os problemas dos cidadãos. O desvirtuar do projecto europeu não ocorreu no vácuo, mas sim porque uma parte considerável da esquerda deixou de apresentar e construir um projecto reformista para a sociedade.

O maniqueísmo simples que se tenta empolar não é mais do que uma irresponsabilidade com o resultado prático de agudizar as contradições das instituições europeias. Uma Europa mais coesa, mais igual, mais ecológica, mais humana é possível. Uma Europa diferente é possível — precisamos lutar por ela. Antes euro-reformista do que euro-exterminador.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários