Foram divulgados hoje números de vendas de telemóveis a nível global. Podemos notar que a Samsung voltou à posição cimeira, ultrapassando a Apple, em mais um passo numa dança que tem anos. E podemos apontar, com mais interesse, que duas fabricantes chinesas, incluindo a menos conhecida Transsion, estão em franco crescimento.

Mas podemos ir mais longe e encontrar aqui um sinal do caminho de fragmentação que o mundo tecnológico está a percorrer nos anos recentes.

Ironicamente, o mundo das tecnologias de comunicação e da Internet nunca foi verdadeiramente globalizado. Empresas em que, neste ponto do globo, nos habituámos a pensar como sendo gigantes globais têm uma presença diminuta ou quase inexistente noutras geografias, onde vivem muitos milhões de pessoas. 

Não é preciso aventurarmo-nos até longitudes distantes para termos exemplos desta fragmentação. Nem é preciso sair da Europa.

Na Ucrânia e na Rússia, o Telegram (uma aplicação de mensagens criada por dois irmãos russos e que tem sede no Dubai e nos Emirados Árabes Unidos) é particularmente popular. No topo da lista dos países em que o Telegram é mais descarregado estão a Índia, Rússia e EUA – mas estes são os números absolutos; em proporção da população, o lugar cimeiro é da Ucrânia, logo seguido da Rússia. 

Já no resto da Europa, é bem sabido, o WhatsApp tornou-se o meio preferido de comunicação, conseguindo a proeza de ser transversal a gerações de uma forma que a grande plataforma-irmã, o Facebook, não conseguiu, nem conseguirá.

Disputas geopolíticas, dinâmicas de concorrência empresarial, efeitos de rede (que determinam que uma rede social ou aplicação de mensagens é tão mais interessante quantas mais pessoas conhecidas lá estejam), maturidade das economias e dos fenómenos de digitalização, riqueza da população, regimes repressores, e questões culturais – são tudo factores que determinam que um dado serviço ou aplicação seja ubíquo num país, região ou continente, e ignorado, ou perto disso, noutros. 

Mais do que um daqueles factores contribuiu para o que se passa hoje no mercado dos telemóveis. O factor político não foi de somenos.

No primeiro trimestre deste ano, as vendas globais de iPhones, da Apple, caíram 10%, segundo a analista IDC. A sul-coreana Samsung obtém o primeiro lugar da tabela às custas da rival e apesar de ter caído quase 1%.

Em terceiro surge a chinesa Xiaomi, com um crescimento de 34%. E, em quarto, está a Transsion, outra empresa chinesa, que está a ser bem-sucedida em África, no Médio Oriente, América Latina e partes da Ásia. As vendas cresceram 85%. (É claro que a Apple vende telemóveis muito mais caros do que os da Transsion, algo que estes números não reflectem.)

A quebra da Apple é parcialmente explicada por descidas na China.

Há notícias de que as autoridades de Pequim estão a obrigar funcionários públicos (e a tentar convencer consumidores) a desistir dos produtos da tecnológica americana e a comprar antes telemóveis e outros equipamentos de empresas chinesas. Será um misto de proteccionismo económico e receios de cibersegurança. 

A Huawei, que desapareceu do ranking global de fabricantes na sequência do boicote ocidental, está a ressurgir na China e noutros pontos da Ásia. E a Apple está, de resto, a diversificar os locais de produção, apostando em fabricar mais aparelhos em países como o Vietname e a Índia. 

Um fenómeno de separação de mundos está a acontecer também com os chips.

Os EUA e aliados, entre os quais a Coreia do Sul e o Japão, têm vindo a restringir a exportação de chips e de tecnologia para os fabricar para países como a China. Agora, Pequim instruiu os principais operadores de comunicações do país para retirarem das suas infraestruturas chips das americanas Intel e AMD, segundo uma notícia do Wall Street Journal da semana passada.

Nos últimos 30 anos, há tecnologias de comunicação que se tornaram globais. A World Wide Web, nascida na neutral Suíça, é uma delas. Ajuda que nunca tenha tido uma empresa por trás. É possível argumentar que o sistema operativo Android também pode entrar nesta lista.

Mas o mundo não usa todo o motor de busca do Google, nem o WhatsApp ou o Instagram. Nem todos fazem compras na Amazon. Nem todos vêem o Netflix.

Por cá, os tribunais debruçam-se sobre os vínculos laborais dos estafetas da Uber e da Glovo. Na Argentina, há uma empresa que disponibiliza casas de banho e café grátis a estes trabalhadores com o intuito de obter dados e vendê-los a empresas de crédito e operadoras de telecomunicações. São realidades distintas. É só um exemplo.

Às vezes tendemos a pensar que as tecnologias tornam o mundo mais homogéneo; pensamo-lo não porque já vivamos numa aldeia global, mas precisamente porque o globo ainda não é uma aldeia e há realidades que são muito distantes. Os tempos, de resto, não são de aproximações.

Esta newsletter faz aqui uma pausa e regressa no início de Maio. Até lá.