Adega São Mamede da Ventosa quer Caladoc entre as castas ‘prioritárias’ para o VITIS

A maior cooperativa do país tem vindo a apostar em marcas próprias, para levar o seu vinho directamente ao consumidor final, e vê futuro promissor numa uva francesa a que quase ninguém passa cartão.

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Em meados de Abril, assim está a Caladoc, na vinha de um dos associados da Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa Nuno Ferreira Santos
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É a maior adega do país, com uma vindima "histórica" em 2023: 28,2 milhões de quilos de uvas transformadas, 22 milhões de litros de vinho — muito mais do que produzem anualmente as regiões vitivinícolas portuguesas mais pequenas. E, apesar de o seu forte ser o granel (75% da produção), a Adega Cooperativa São Mamede da Ventosa (ACSMV) quer aumentar a quota de produto embalado, nomeadamente dos vinhos engarrafados, apostando simultaneamente na qualidade, com marcas próprias que levem o seu nome ao consumidor final — são 12 já, a adega lançou recentemente um topo de gama e tem em estágio o seu primeiro espumante de sempre —, e numa casta em concreto.

A cooperativa fundada em 1956, e cujos 420 associados somam cerca de 2.000 hectares de vinha, essencialmente no concelho de Torres Vedras mas também em Mafra, vê um futuro promissor no trabalho com a variedade francesa Caladoc, que representa 40% do encepamento naquela área de influência e, ao que parece, se adaptou muito bem àquele terroir, uma das nove Denominações de Origem (DO) da região vitivinícola de Lisboa e que, coisa rara, é amiga do viticultor e do enólogo. Produtiva, mais resistente do que a maioria a grande parte das doenças da vinha, tolerante à secura e, garantem as fontes ouvidas pelo PÚBLICO, com uma qualidade que não se lhe conhece em mais lado algum do país.

Há dez anos, a ACSMV, actualmente a facturar 11 milhões de euros (dados de 2023, em linha com a facturação dos anos anteriores), "escoava toda a sua produção", em granel e em tetrapack, para Angola e outros Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), recorda Nuno Silva. "Esses mercados caíram 70%." A adega também vendia muito para a Rússia, em tetrapack, e com a guerra também perdeu esse negócio. Havia que encontrar outros destinos para o vinho dos viticultores de Torres Vedras. "Embalando, conseguimos valorizar o vinho", refere o presidente da cooperativa. Não será só isso, mas sim, colocar o vinho numa garrafa ajuda.

Hoje, a exportação vale 25% e é sobretudo para países europeus e para o Brasil. Se olharmos só para o vinho engarrafado, essas vendas são sobretudo lá fora (75%; apenas 25% ficam no mercado nacional).

António Ventura (à esquerda) e Nuno Silva, enólogo consultor e presidente da Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa, respectivamente Nuno Ferreira Santos
Os associados da Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa somam cerca de 2.000 hectares de vinha, essencialmente no concelho de Torres Vedras mas também em Mafra Nuno Ferreira Santos
A Adega de São Mamede da Ventosa é a maior cooperativa do país; em 2023 transformou 28,2 milhões de quilos de uvas, o equivalente a uma produção de 22 milhões de litros de vinho Nuno Ferreira Santos
João Rodrigues é o enólogo residente na Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa Nuno Ferreira Santos
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António Ventura (à esquerda) e Nuno Silva, enólogo consultor e presidente da Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa, respectivamente Nuno Ferreira Santos

A Caladoc é um cruzamento das variedades Grenache e Malbec, chegou a Torres Vedras nos anos 1990, pela mão do antigo enólogo da adega José Costa Neiva, e é, em si mesma, uma das estratégias da actual direcção da ACSMV para "conquistar novos mercados". "É uma casta predominante na região, apesar de não ter grande pedigree, de não ter nome, que produz muito bem e que se adaptou aqui à zona Oeste, onde faz vinhos de excelente qualidade", descreve Nuno Silva.

O actual técnico consultor de São Mamede da Ventosa, António Ventura, fala-nos do comportamento que a casta, nascida no final do século XX em França e resultante de uma investigação do ampelógrafo Paul Truel, tem ali em Torres Vedras: "produz vinhos com muita fruta, vermelha e negra, muito frescos, com notas de menta, é medianamente sensível ao míldio mas é resistente a outras pragas, tem produções compensadoras e mantém uma qualidade constante quando produz um bocadinho mais".

Uva de película rija, outra "vantagem" da Caladoc é ser "uma casta de maturação média", que os viticultores podem apanhar antes das chuvas de Setembro, na mudança de equinócio". Nessa altura, em Torres Vedras, "chove sempre e por vezes chove durante duas semanas", explica Ventura, que na adega trabalha com o enólogo residente João Rodrigues.

Não tendo um histórico muito longo para mostrar, porque os vinhos se esfumavam nos tais mercados de volume, há na adega "vinhos com Caladoc em blend com quatro e cinco anos que estão hoje muito bem", garante o enólogo, também ele produtor, com vinhas ali perto.

Recentemente, a ACSMV lançou o varietal (mais um) Alma Vitis Caladoc, colheita de 2021, o que é também uma aposta na marca mais antiga da adega, e um tinto Grande Reserva com Touriga Nacional, Syrah e Caladoc​ — é o seu vinho de topo neste momento (ler notas de prova).

Porque não entusiasmou sequer os franceses?

Para começar, porque "não veio da Borgonha, de Bordéus ou de Champanhe", nota António Ventura. Começou por ser plantada no centro e no sul de França, na importante, mas sem o mesmo prestígio, região de Languedoc-Roussillon. Hoje em dia, é muito plantada na Argentina e no Chile e, por cá, existem noutras regiões, como o Tejo ou o Alentejo. E depois havia o preconceito de ela ser muito produtiva, logo sem potencial enológico (normalmente, , não se consegue o melhor dos dois mundos).

José Neiva Correia, que Ventura substituiu na ACSMV em 2021, recorda como se cruzou, ainda no tempo da "região demarcada da Estremadura", que há 15 anos deu lugar à actual designação (Lisboa), com a Caladoc. Integrava então a Câmara de Provadores da região e provava regularmente na Estação Vitivinícola Nacional, em Dois Portos, quer os vinhos candidatos a certificação, quer as micro-vinificações que ali se faziam. "Havia uma coisa que se chamava Nova Obtenção. E eu verificava que a Nova Obtenção era melhor que os outros vinhos. Eu perguntava e eles faziam segredo. Um dia, estava com o engenheiro Miguel Catarino, em França, para uma feira, e encontrámos um viveirista que nos perguntou: como é que se tem comportado lá em Portugal o Caladoc?". Uma coisa levou à outra e Neiva Correia percebeu o que era a tal "nova obtenção".

O vinho já o provava há algum tempo, sem saber que era Caladoc. Depois de o tal viveirista lhe dizer "se um viticultor usar essa casta, fica rico em pouco tempo", o enólogo e produtor fez "o mapa da mina". Tinha uma vinha sua em Runa, Torres Vedras, e encomendou na francesa Mercier "plantas para uma vinha inteira". E depois, daí até estar espalhada por Torres Vedras? "Os viticultores não são parvos e vão vendo as vinhas dos outros. Foram-me pedindo garfos e eu deixava-os ir lá buscar." Ainda hoje, o Caladoc é importante na produção na sua DFJ Vinhos, representando 50% do encepamento.

A adega da cooperativa que Nuno Silva dirige há dois anos deve distar do Atlântico uns 7 a 8 quilómetros. E a Caladoc parece gostar dessa proximidade ao mar. De acordo com as regras do programa VITIS, que privilegia as candidaturas de quem se propuser plantar castas autóctones, no caso de Lisboa e nas tintas a prioridade deve ser dada ao Castelão. Mas a ACSMV quer "demonstrar que, perto do mar, o Caladoc faz melhores vinhos" e está a ultimar um estudo para apresentar à Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa (CVR Lisboa) sobre as virtudes agrícolas e enológicas da casta francesa, que incluirá contributos de vários especialistas, nomeadamente de Amândio Cruz, consultor em viticultura há mais de 30 anos em várias regiões do país.

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A Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa vende a granel 75% da sua produção, mas está aposta em aumentar a quota do vinho embalado Nuno Ferreira Santos
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Recentemente, a ACSMV lançou o varietal (mais um) Alma Vitis Caladoc, colheita de 2021 Nuno Ferreira Santos

CVR Lisboa receptiva, mas...

A comissão vitivinícola está receptiva a fazer a ponte com a tutela nesta matéria, mas sublinha que esta é uma reflexão que ainda é feita internamente, dentro da região, e que carece de discussão. Para que possa haver o que Francisco Toscano Rico chama de "abertura controlada" à plantação de mais vinhas de Caladoc na DO Torres Vedras, explica o presidente da CVR Lisboa que têm de ser acauteladas duas questões.

A primeira é a necessária auscultação ao mercado, que, como se sabe há já algum tempo, cá dentro e lá fora, pede hoje sobretudo vinhos brancos, estando as vendas de tintos e generosos em queda — no caso da ACSMV os brancos são hoje 15% do encepamento, mas há uns 20 anos eram 85% a 90% das vinhas. A segunda questão que se coloca, para a CVR, é a de saber como operacionalizar uma excepção sem que ela vire regra. "A questão não é tanto a bondade da casta ou os resultados que ela pode dar, é perceber como é que essa micro-zonagem pode ser operacionalizada dentro do programa, sem deturpar a prioridade dada às castas nacionais e permitindo que o programa continue a ser ágil, quer do ponto de vista de quem se candidata, quer do ponto de vista de quem controla", explica Toscano Rico.

O presidente da CVR Lisboa diz ver com bons olhos, à partida, que se "abra a porta, permitindo algumas plantações, mas sem que o Caladoc se torne a principal casta da região nos próximos anos". Até porque a região subscreve a aposta nacional nas castas autóctones e, mesmo no que diz respeito a excepções — o último Governo aceitou que cada uma das 14 regiões vitivinícolas portuguesas apresentassem duas apostas internacionais, uma casta tinta e outra branca, e os últimos VITIS já reflectiram isso —, Lisboa fez a sua aposta e não pretende desviar-se dela: nas estrangeiras, Syrah e Chardonnay.

Acontece que a comissão vitivinícola reconhece que nove denominações de origem querem dizer que Lisboa é uma região muito diversa, com condições de produção muito diferentes, solos mais arenosos ou argilocalcários, vinhas ou mais ou menos próximas do mar, etc. No caso de Torres Vedras, falamos de um clima de influência atlântica, com a vantagem das noites frescas, e com orvalhadas, e de solos argilosos com alguma profundidade e calcário à mistura.

Videira de Caladoc, no terroir de Torres Vedras Nuno Ferreira Santos
Pormenor da folha da videira da variedade francesa Caladoc Nuno Ferreira Santos
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Videira de Caladoc, no terroir de Torres Vedras Nuno Ferreira Santos

Recorde-se, contudo, que não há propriamente restrições no acesso aos fundos do VITIS. O que há é prioridades. Isso num cenário de haver candidatos a mais para os apoios disponíveis, o que não é actualmente o caso — em 2023 não esgotou o envelope financeiro.

A casta-rainha de Lisboa é, de resto, o Arinto, e isto apesar de, nas brancas, a mais plantada ser o Fernão Pires, precisamente a predominante nas vinhas dos associados da ACSMV. As duas são as variedades brancas predominantes, ao passo que nas tintas as castas mais plantadas são Castelão e Tinta Roriz. A adega, que também lançou recentemente um reserva de Arinto e está a estagiar um espumante bruto reserva dessa casta branca e de Chardonnay (método champanhês, 5.000 garrafas, para lançar lá para o final do ano), até quer poder contar com mais uvas da 'rainha', pelo que, diz, tem vindo a sensibilizar os seus viticultores para plantarem mais Arinto.

Em quatro anos, Nuno Silva gostava de conseguir embalar (garrafa, mas também outras embalagens) 35% da produção, ou seja, mais 10% do que actualmente. "Isso já seria muito bom."

Nome Alma Vitis Caladoc Tinto 2021

Produtor Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa

Castas Caladoc

Região Vinho Regional Lisboa (Torres Vedras)

Grau alcoólico 13,5%

Preço (euros) 6,5

Pontuação 88

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova É a mais antiga marca da Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa, que recentemente voltou a apostar na marca histórica Alma Vitis, em vinhos varietais, como este, e em geral na qualidade e no vinho engarrafado – 75% da produção da adega, a maior do país, ainda é vendida a granel. Frutos do bosque e notas balsâmicas num vinho de nariz fresco e boa acidez, com final persistente e fumado. Um agradável exemplar de uma casta de que a maioria dos enólogos e produtores foge, por ser produtiva e, a priori, sinónimo de reduzido interesse enológico. Ao que parece, esta francesa — filha da Grenache e da Malbec — dá-se bem no terroir de Torres Vedras, em vinhas enraizadas em solos argilo-calcários e bafejadas pela brisa atlântica, onde está desde os anos 1990 e em cujo encepamento tem peso considerável — 40% só no universo da ACSMV.

Nome Adega São Mamede Grande Reserva Tinto 2019

Produtor Adega Cooperativa de São Mamede da Ventosa

Castas Touriga Nacional, Syrah e Caladoc

Região Vinho Regional Lisboa (Torres Vedras)

Grau alcoólico 14%

Preço (euros) 21,19

Pontuação 92

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Cor rubi profundo. Nariz de fruta silvestre e vermelha, com notas mentoladas e uma boca sedosa e fresca. Taninos redondos e boa acidez, que ajudaram a limpar o palato a cada dentada nas costelinhas de borrego com que o maridamos. Estruturado, pelo uso da madeira, bem integrada. Uma bela estreia num campeonato a que a maior cooperativa do país, e um produtor ‘do granel’, não estava habituada, este Adega São Mamede Grande Reserva é o vinho de topo num portefólio que já conta 12 marcas próprias e que quer crescer. 3.100 garrafas, lançadas em Novembro último e para celebrar os 65 anos da adega.

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